“Ou a sentença existe, ou não existe. Se existe, ou é válida, ou não no é. Se não é válida, é nula, porque não se tem, no sistema jurídico brasileiro, a sentença anulável. Se é válida, ou é irrescindível, ou rescindível. Se ocorre que se rescindiu sentença inexistente, cortou-se o nada (…)”. (PONTES DE MIRANDA, Comentários ao Código de Processo Civil, tomo VI, p. 195, Forense editora, 1975).
“A PORTA DA VERDADE estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam”.
(CARLOS DRUMMONDE ANDRADE, Verdade, in Corpo).
Há temas na ciência do processo civil que parecem permanecer longo tempo em suspenso, aguardando que a realidade, apenas ela, possa dar a solução que a doutrina não conseguiu encontrar. Talvez aconteça com o processo civil algo semelhante àquilo que muitas vezes acontece na literatura, quando a realidade supera a própria ficção. Basta, pois, um fato real para que melhor direcionemos o nosso pensamento, e ver o que antes não podíamos ver. O rumoroso caso envolvendo o “juiz” que não era inglês – e que também não era juiz -, é um exemplo de que como a realidade nos propicia muitas vezes a chave para a solução dos problemas.
Ao nos apresentar, a nós brasileiros, o genial CHIOVENDA e sua obra “Instituições de Direito Processual Civil”, LIEBMAN, vivendo aqui seu exílio, apondo notas que buscavam esclarecer o pensamento do Mestre acerca dos diversos institutos do processo civil, esclarecia que CHIOVENDA se opunha à posição de BÜLOW, até então vitoriosa, para quem os três pressupostos processuais (poder jurisdicional, capacidade e demanda) eram pressupostos de existência do processo. Contrapondo-se, dizia CHIOVENDA: “não se creia que sejam pressupostos do processo, mas antes pressupostos de um processo regular, isto é, susceptível de conduzir a efetivo exercício da função jurisdicional”. A partir da obra de CHIOVENDA, e das imprescindíveis notas de LIEBMAN, com efeito, é que a doutrina brasileira começou a refletir melhor sobre o tema, fixando a distinção entre os “pressupostos da constituição” e os “pressupostos de desenvolvimento” do processo. Nesse contexto, CALMON DE PASSOS afirmava ser necessário distinguir, dentre os pressupostos processuais, aqueles que formam requisitos imanentes à existência do processo (e que, segundo o ilustre processualista baiano, são os verdadeiros pressupostos processuais, sem os quais não existe relação processual), daqueles requisitos que são indispensáveis, mas não à existência do processo, senão que a seu desenvolvimento. Mas havia ainda questões que desafiavam a doutrina do processo civil.
Pois que nos deparamos agora com o emblemático caso de um “juiz” que, durante vinte anos, proferiu inúmeras decisões e sentenças, mas que, como se sabe agora, havia se utilizado de uma identidade falsa, e mais do que isso de toda uma vida que ele inventara, ludibriando a tudo e a todos, em especial a comissão do concurso para a magistratura, com o que pôde ser investido e, assim, exercer a judicatura. O que, nesse caso, devemos considerar em termos de pressupostos processuais de existência do processo?
Ingenuamente, sustentam alguns que, como os requisitos formais previstos no concurso para ingresso à magistratura teriam sido cumpridos, pois que, independentemente da falsidade da documentação, o candidato fora aprovado, não há senão que considerar que havia juiz, ainda que não aquele em cujo nome as decisões e sentenças foram assinadas, mas de uma outra pessoa, como que a sugerirem que se deve considerar a existência de duas pessoas, ou, melhor, de “meias pessoas”. Sim, de “meias pessoas”, porque se o juiz inglês era falso, e não existia, por outro lado havia um ser humano de carne e osso, um verdadeiro brasileiro que conseguira, com muito esforço, ser aprovado na magistratura. Então, para alguns devemos considerar apenas essa “meia-pessoa” verdadeira, digamos o “juiz brasileiro”, e não o “juiz inglês”, para reconhecer validez a tudo aquilo que foi decidido pelo juiz que se dizia inglês, mas que era bem brasileiro.
Essa ideia de considerarmos o juiz como se fosse, ele próprio, duas pessoas, uma das quais alguém que falsificou a identidade, em uma manifesta e grave violação ao princípio da moralidade, e uma outra pessoa verdadeira, de carne e osso, que era o verdadeiro juiz por detrás da máscara, essa ideia nos faz lembrar de um poema de DRUMMOND, acima citado, em que o Poeta mineiro dizia que:
“A PORTA DA VERDADE estava aberta (…) mas só deixava passar (…) meia pessoa de cada vez” (…)”,
e que por isso não era “possível atingir toda a verdade, (…) porque a meia pessoa que entrava (…)” só trazia o perfil de meia verdade.
Não se poderia ser mais exato para descrever o insólito episódio em questão, em que para aceitarmos como válidas as decisões e sentenças proferidas pelo “juiz inglês” teríamos que considerar apenas o outro perfil dele, em que há meia verdade, ou seja, aquele em está uma pessoa de carne e osso que passou no concurso da magistratura. Mas como observa DRUMMOND, a “meia pessoa” só traz consigo o perfil de meia verdade. E qual a outra verdade, ou melhor, a outra mentira, e o que devemos fazer com ela?
Devemos lembrar que, acima dos requisitos formais que estão previstos em um concurso público, estão os princípios constitucionais, e dentre eles o da moralidade. Portanto, como aceitar que alguém, violando dolosamente esse princípio, falsificando documentos, possa legitima e dignamente exercer a magistratura? Não há meia verdade, porque se há mentira, não há verdade. E, assim, a conclusão não pode ser outra: é inexistente o ato de investidura na magistratura por violado o princípio da moralidade.
Retornando ao tema inicial, o que trata dos pressupostos processuais, temos no episodio do juiz que não era inglês, a constatação de que, em não havendo juiz legitimamente investido, não há o pressuposto de existência do processo, o que significa dizer que todas as decisões, todas as sentenças, enfim todos os atos que o “meio juiz” praticou são todos atos inexistentes. É necessário “cortar o nada”, como dizia PONTES DE MIRANDA.