Se o direito processual civil é, como disse Pontes de Miranda, o ramo das leis mais rentes à vida, seria de supor ocorressem duas coisas: a primeira a de que as normas processuais devessem  ser as menos resistentes a mudanças que a vida impõe; e a segunda, a de que os processualistas também não devessem oferecer resistência a essas mudanças e que, além disso, buscassem interpretar as normas de acordo com as necessidades que a vida impõe, ainda que a norma legal não tivesse experimentado qualquer mudança em seu enunciado.

E se, de fato, as normas processuais civis no Brasil têm sido modificadas com maior frequência do que se dá com outras normas legais, tendo surgido de resto um novo código de processo civil (CPC/2015),  a comprovar que o Legislador está consciente daquela aguda observação de PONTES DE MIRANDA, o mesmo, contudo, não ocorre de parte de muitos juízes e tribunais, que resistem a ver nas normas do processo civil uma nova realidade, ainda quando a norma legal, ela própria, terá se modificado.

É o que se dá com o princípio da dialeticidade, de aplicação sobremaneira importante no recurso de apelação. O nome dado a esse princípio –  que toma de empréstimo o sentido mais genérico da palavra “dialética”, entendida como oposição ou conflito de posições – ajusta-se com o ônus que é imposto à parte recorrente, que é o de explicitar, com a maior clareza possível, por qual razão não se conforma diante de uma sentença, pretendendo que um tribunal a reforme. Trata-se, pois, de um ônus que se impõe à parte recorrente, ônus que, desatendido, conduz a que não deva ser conhecido o recurso de apelação, porque desatendido o princípio da dialeticidade.

Durante o longo tempo de vigência do CPC/1973, os processualistas de maneira geral, interpretando o artigo 514, trataram simbolicamente do princípio da dialeticidade quando aplicado ao recurso de apelação. PONTES DE MIRANDA, por exemplo, afirmava que “as razões de apelação são essenciais”. Mas era raro que o processualista cuidasse aprofundar o estudo desse princípio, o que gerou na jurisprudência a sensação de que se trataria de um princípio meramente formal, ou ainda que, diante de um colisão entre o princípio da dialeticidade e o do acesso à justiça, este último deveria prevalecer, o que significava dizer que o recurso de apelação, ainda quando as razões do apelo não se mostrassem claras ou nítidas, mesmo nesse caso o recurso de apelação deveria ser conhecido.

E malgrado tenha o CPC/2015, por seu artigo 1.010, modificado a essência do princípio da dialeticidade recursal, enfatizando a importância desse princípio, sobretudo quando aplicado ao recurso de apelação,  muitos juízes e tribunais resistem a ver essa mudança. Continuam a considerar o princípio da dialeticidade como um princípio meramente formal ou simbólico, mas sem nenhum efeito prático.

Mas se compararmos o que prevê o artigo 1.010 do CPC/2015 com o que estatuía o artigo 514 do CPC/1973, perceberemos que não é mais suficiente que o apelante apresente “os fundamentos de fato e de direito”, como exigia o artigo 514, inciso II. Agora, diante do CPC/2015, e do que preveem os incisos II e III do artigo 1.010, o apelante tem diante de si o ônus de fazer a exposição do fato e do direito, apresentando “as razões do pedido de reforma ou de decretação de nulidade” da sentença, sem o que, desatendido ao princípio da dialeticidade, do recurso de apelação não se deve conhecer.

Enfatizando o Legislador a necessidade de o apelante formular suas razões de inconformismo diante da sentença, modificou-se o conteúdo do princípio da dialeticidade, fazendo-o consentâneo com aquilo que realmente o conforma, que é a necessidade de que o apelante demonstre por qual concreta razão  discorda do que foi decidido na sentença, contextualizando com o fato e o direito, ou seja, com aquilo que havia estruturado a peça inicial (no caso de o apelante ser o autor da ação), ou na contestação (se o réu é o apelante). Uma argumentação genérica, ou a mera reprodução de alegações que se acumularam no processo, sem as relacionar diretamente com o que foi decidido na sentença, significa desatender ao princípio da dialeticidade recursal. O recurso de apelação não deve, portanto, ser conhecido. Esse é o rigor que é exigido pelo princípio da dialeticidade.

A propósito, impõe-se um zelo ainda maior de parte dos tribunais na aplicação desse princípio em face das relações de consumo, não se podendo olvidar de como a Constituição singulariza essas relações, estabelecendo um regime de proteção ao consumidor. Assim, quando, em uma lide de consumo, o comerciante ou prestador de serviço interpõe recurso de apelação, exige-se um rigor ainda maior no controle da dialeticidade. Afinal, se todo princípio é, como observa ROBERT ALEXY, um mandamento de otimização que impõe ao magistrado extraia seu conteúdo de acordo com as circunstâncias do caso em concreto, isso tem especial importância nas relações de consumo, a reclamar uma interpretação do princípio da dialeticidade recursal que se ajuste àquele regime de proteção constitucional.

 

 

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