A lógica do “sujeito suposto saber”, que LACAN considera como eixo central da psicanálise, consiste em uma ilusão: a de o analista supor que possa emprestar significado aos sintomas do analisando, antes mesmo de analisá-lo. Trata-se, pois, de uma  transferência de significados, em cuja base está uma ilusão, porque o analista supõe saber de antemão o que posteriormente pode vir a saber, embora sem a certeza de que aquilo que supunha saber encontrará correspondência com a realidade.

A norma, emanada do Conselho Nacional de Justiça, acerca da litigância predatória (que agora se convencionou chamar de “litigância abusiva”), emprega a mesma lógica do “sujeito suposto saber” de LACAN, porque parte da ilusão de que o juiz deve supor de antemão se trate de uma litigância predatória, bastando que se trate de uma ação ajuizada contra determinadas empresas. O mecanismo funciona mais ou menos da seguinte maneira: o juiz parte da suposição de que muitos advogados estão a praticar a litigância predatória no Brasil e para isso é que o CNJ editou a norma, determinando que o processo seja imediatamente extinto; começa então o fato hipotético de que, demandada judicialmente determinada empresa, supõe-se que o advogado esteja a praticar a litigância predatória, e o processo deve ser imediatamente extinto. O juiz  é assim levado a supor que, conquanto saiba, ele próprio, identificar quando existe litigância predatória, e sabendo que muitas empresas são demandas em inúmeros processos porque, de fato, não respeitam o direito dos consumidores, a resolução do CNJ estabelece que há litigância predatória, e não lhe cabe como juiz senão que fazer extinto o processo.

Para detalhar como opera o raciocínio do juiz diante desse tipo de situação, utilizaremos aqui de um exemplo dado pelo filósofo SLAVOJ ZIZEK, que, oriundo de um pais que adotava o socialismo real (a extinta Iugoslávia), lembra que era algo comum que sempre faltasse algum produto nos mercados e, assim, partindo desse fato hipotético, era frequente que surgisse o boato de que determinado produto (o papel higiênico, por exemplo) faltaria, e tão logo começava a circular esse boato, as pessoas corriam aos mercados e compravam o produto em quantidade muito maior do que normalmente comprariam, e o produto acabava por falta, precisamente em função do boato. As pessoas pensavam assim: “Não sou ingênuo nem bobo, sei muito bem que há papel higiênico mais do que suficiente nas lojas; mas é provável que haja umas pessoas ingênuas que acreditem nesses boatos, que os levem a sério, e elas agirão de acordo com isso – começarão a comprar papel higiênico freneticamente e, assim, acabará havendo mesmo a escassez dele; assim, embora eu sabia muito bem que existe o bastante, seria boa ideia comprar um montão”.

Como observa ZIZEK, “O ponto crucial é que esse outro que supostamente crê de modo ingênuo não tem que existir, de fato: para produzir seus efeitos na realidade, basta os outros suporem que ele existe. Numa multidão definida e fechada de sujeitos, todas as pessoas podem desempenhar esse papel para todas as demais  – o efeito será exatamente o mesmo: uma escassez real de papel higiênico. Quem acabará ficando sem ele será, precisamente, a pessoa que persistir na verdade, que disser a si mesma: Sei que isso é só um boato, existe papel higiênico suficiente’ e agir de acordo com essa ideia”. (“O Sublime objeto da Ideologia”, p. 256).

No caso do juiz, ele raciocina de maneira semelhante, mas quem será o principal prejudicado pela ilusão a que ele foi levado não é ele, o juiz, mas sim a parte, que terá o processo extinto apenas por um fato hipotético que a norma do CNJ erigiu norma.

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