“Tradutorre – traditore” é uma expressão que, surgindo na teoria literária italiana, de uso inicial apenas pelos especialistas, andando o tempo tornou-se conhecida do público em geral. Com um toque de ironia, mas com grande teor da verdade, expressa a ideia de que, inevitavelmente, o “tradutorre” (tradutor) é um “traditore” (traidor), na medida em que, traduzindo um texto, acaba sempre por o modificar, mesmo quando não tivesse em absoluto a intenção de fazê-lo. Todas as traduções seriam, pois, infiéis. Trata-se de um fenômeno imanente à tradução de qualquer texto, literário ou não, e é tarefa sobretudo da Semiótica a análise de como o tradutor opera como o significado e o significante dos textos quando os verte para uma outra língua, e qual o grau de liberdade de que razoavelmente pode se utilizar, não se podendo olvidar, está visto, das características e peculiaridades de cada língua e de sua específica riqueza.
No Brasil, vários escritores, para complemento da renda, tornaram-se esporádicos tradutores, como MÁRIO QUINTANA, CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, MANUEL BANDEIRA e JOSUÉ MONTELLO, que, ao traduzirem grandes obras da literatura mundial, colocaram na tradução para a língua portuguesa seu gênio, “traindo” o texto original por uma boa causa ao propiciar ao leitor brasileiro a riqueza do texto original, acrescida de uma outra riqueza: aquela que a língua portuguesa, apenas ela, permite dar. Com efeito, ler “Em Busca do Tempo Perdido”, de PROUST, na preciosa tradução do poeta gaúcho MÁRIO QUINTANA é uma experiência única de que o leitor brasileiro pode desfrutar, e que lhe permite aquilatar bem o valor quando compara a tradução feita por QUINTANA com a que um tradutor profissional fez de PROUST, como FERNANDO PY, por exemplo. Perceberá o leitor brasileiro que, em geral, os tradutores profissionais ficam presos aos texto original, como uma espécie de dogma a que devem se submeter, enquanto os romancistas são sempre romancistas, ainda quando estão a traduzir textos de outros autores, e por isso se sentem mais livres. E a sorte do leitor está exatamente em poder usufruir dessa liberdade.
Tomemos um outro exemplo, que, de resto, será de valia aos juristas em geral. Comparemos, pois, a tradução de “FAUSTO”, do genial GOETHE, feita pelo escritor português, ANTÓNIO FELICIANO DE CASTILHO (1800-1875), que se notabilizou por polemizar com ANTERO DE QUENTAL naquilo que ficou conhecido como “A Questão Coimbrã” (um debate literário acerca do uso da língua portuguesa). Comparemos, pois, a tradução de CASTILHO, que ainda hoje é uma das mais importantes traduções de “FAUSTO” para a língua portuguesa, com aquela que, no Brasil, foi feita por um jurista, SILVIO MEIRA, que cuidou advertir o leitor de que sua principal preocupação foi a de “não introduzir conceitos e ideias que nada têm a ver com o pensamento do autor”.
Como não dominasse a língua alemã, CASTILHO não se sentiu amarrado ao texto original, o que lhe permitiu explorar a riqueza da língua portuguesa, que CASTILHO dominava como poucos. E se é certo que, em muitos trechos, CASTILHO de fato se afastou do texto original, o resultado final tornou ainda mais agradável o texto de GOETHE, quando traduzido para a língua portuguesa.
E foi esse distanciamento entre o texto original e sua tradução à língua portuguesa que mereceu sérias ressalvas de SILVIO MEIRA, ao afirmar que CASTILHO “traíra” para além do razoável o texto de GOETHE, como em determinada passagem, de especial interesse aos cultores do Direito. GOETHE, como se sabe, era um jurisconsulto e nalgumas passagens de “FAUSTO” empregou institutos jurídicos, como neste trecho, assim traduzido por CASTILHO:
“(…)
Conservo
para aí todas essas velharias
porque eram de meu pai, que eu fruto delas
inda o não vi; nenhum! Olha a roldana,
como está do candeeiro enfumaçada!
Pudera! um lucubrar de tantos anos!
Melhor eu me tivera descartado
de tão reles herança, encargo e carga
que me faz suar tanto! O que homem herda
só o pode chamar seu quando o utiliza.
Haver que nos não presta é simples ónus.
Só no uso consiste a propriedade. (…)”.
Para MEIRA, a tradução de CASTILHO, “além de não condizer com a concepção goethiana”, envolve indevidamente conceitos de ordem jurídica de alta responsabilidade, como o da propriedade, acerca do que civilistas do porte de JHERING e SAVIGNH haviam travado “aguerridas batalhas”, e que GOETHE não tivera a intenção de tratar da propriedade como instituto jurídico, senão que se refere à ideia de que se deve aproveitar o instante fugaz que o momento cria, e que não se trata senão de bem gozá-lo. Vejamos como MEIRA traduziu esse trecho:
“(…)
Cada qual só assimila um pouco se é capaz.
Aquele que desfruta o momento fugaz,
Esse é para mim um Homem verdadeiro! (…)”.
Não há questionar o fato de que CASTILHO, ao se utilizar da ideia de propriedade, fugiu do texto literal de GOETHE, mas não o fez, ao contrário do que afirma MEIRA, com a intenção de tratar da propriedade como instituto jurídico, senão que dela cuidou em seu sentido puramente filosófico, como, aliás, é de se constatar da própria tradução de MEIRA. Vejamos:
“(…)
Bem sei como se estuda o direito em verdade.
Herdam-se eternamente as leis e seus direitos,
Como se fossem do povo eterna enfermidade,
Geração a geração se infiltram com mil jeitos,
Lentamente se vão de cidade a cidade,
Razão é contra-senso, o Bem se torna injúria
Pobres de ti se herdares de outros que hão vivido!
E quanto a esse direito atualmente surgido,
Que pena! Nem se fala! É tudo coisa espúria” (…)”.
E foi precisamente essa concepção filosófica do Direito, e sobretudo da concepção dos direitos à propriedade e herança que CASTILHO percebeu no texto e subtexto de “FAUSTO”, trazendo ao leitor de língua portuguesa a perfeita compreensão do que a respeito pensava GOETHE, no sentido de que “Só no uso consiste a propriedade”, sem cuidar CASTILHO, por óbvio, do substrato jurídico daquilo que envolveu a controvérsia entre IHERING e SAVIGNY. (A propósito da visão puramente filosófica de GOETHE acerca dos direitos de propriedade e de herança, que surge cristalina na tradução de CASTILHO, lembremos da polêmica travada entre MARX e BAKUNIN.)
Muitos juristas têm o mau vezo de acreditarem de que o Direito é capaz de dar soluções a todos os problemas da vida, e mais, que esses problemas sempre começam e terminam no Direito. Esquecem que, antes de serem problemas jurídicos, são problemas filosóficos, porque integrados à vida. De resto, o Direito vem sempre a reboque dos fatos.