Há um mito de que o Legislador é onisciente e onipotente, e que em razão desses predicados poderia, segundo a sua livre vontade, modificar o que a Ciência terá estabelecido. Assim é que o Legislador do CPC/2015, convencendo de seu ilimitado poder, desprezando conquistas da Ciência do Processo Civil, como a construção das condições da ação, terá feito extinguir a possibilidade jurídica do pedido. É o que explicaria  que, ao tratar da extinção anormal do processo no artigo 485, inciso VI, do CPC/2015, tenha deixado de se referir à possibilidade jurídica do pedido, o que conduziu muitos processualistas e operadores do direito a, acreditando na onisciência e onipotência do Legislador (talvez mais do que o próprio Legislador), afirmarem que a possibilidade jurídica não é mais uma condição da ação, formando, sim, um tema que diz respeito ao mérito da pretensão. E com isso toda uma longa tradição de nosso processo civil, baseada essencialmente nas ideias do processualista italiano, ENRICO TULLIO LIEBMAN, e que serviram de base para que ALFREDO BUZAID (aluno de LIEBMAN no Brasil) estruturasse aquilo que viria a se transformar em um verdadeiro monumento legislativo: o Código de Processo Civil de 1973.

Aliás, é providencial a lembrança a LIEBMAN, pois que foi ele que, na terceira edição de seu “Manual de Direito Processual Civil”,  adotara momentaneamente a ideia de que, dentre as condições da ação, não deveria estar a possibilidade jurídica do pedido, ao que foi conduzido pelo fato de, na Itália, entrar em vigor a lei que instituíra o divórcio, o que ocorreu em 1970. LIEBMAN, contudo, logo abjurou dessa ideia, voltando a defender a tese de que a possibilidade jurídica do pedido é, sim, uma das condições da ação, ao convencer-se de que, malgrado o pedido em ação de divórcio não pudesse ser mais utilizado como exemplo típico da impossibilidade jurídica do pedido, depois que a lei italiana passou a prevê-lo, isso não infirmava a existência de outras situações em face das quais a impossibilidade jurídica do pedido configura-se. O equívoco em que LIEBMAN havia incidido, e que ele depois logo reconheceu, foi o de tomar por geral algo que é específico, como havia ocorrido com o divórcio em face da lei italiana.

Com efeito, a impossibilidade jurídica do pedido caracteriza-se quando o pedido formulado na ação, considerado em abstrato, é expressamente vedado por lei, de maneira que, nesse tipo de situação, como a lei de antemão estabelece que aquele bem da vida (objeto da pretensão no processo) não pode ser protegido juridicamente, não há sentido em reconhecer-se o direito de ação, por lhe faltar a condição que se consubstancia na impossibilidade jurídica do pedido. Devemos lembrar que a construção da teoria das condições da ação, nos moldes em que LIEBMAN a engendrou, tem em sua raiz a ideia de que não há sentido lógico-jurídico em reconhecer-se o direito de ação quando se sabe de antemão que a tutela jurisdicional de mérito não poderá ser concedida, em uma situação, pois, em face da qual o Legislador nada pode fazer, senão que a reconhecer como tal.

Ao deixar o CPC/2015 de mencionar em seu artigo 485, inciso VI, a possibilidade jurídica do pedido, como também não mais a prever como fundamento para o indeferimento da petição inicial (artigo 330), isso pareceu a muitos processualistas e operadores do direito que o Legislador terá feito desaparecer a possibilidade jurídica do pedido, transformada de uma condição de ação a tema do mérito da pretensão. Mas não se pode olvidar de que do fato de as referidas normas (artigos 330 e 485) não cuidarem expressamente da possibilidade jurídica do pedido, não decorre que ela, a possibilidade jurídica do pedido, terá desaparecido, porque o poder do Legislador encontra intransponível obstáculo na essência das coisas. Há um antigo adágio popular que diz  que não se pode “ser mais realista que o rei”. Pois bem, alguns processualistas e operadores do direito estão sendo mais “realistas” que o Legislador do CPC/2015, ao acreditarem que ele terá feito desaparecer a possibilidade jurídica do pedido como condição da ação.

 

 

 

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