DE UM MEIO FRIO A UM MEIO QUENTE

Para demonstrar como o meio (o meio eletrônico) modificou o nosso processo civil (a sua mensagem) sobretudo a partir da entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015 – CPC/2015, , vamos nos utilizar de algumas das teorias criadas pelo conhecido filósofo canadense, MARSHALL MCLUHAN (1911-1980), expostas em especial em seu livro “Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem” (“Understanding Media”, 1964), em que o conhecido teórico da comunicação analisou a relação entre meio e mensagem (“O meio é a mensagem”), de como o meio modifica o conteúdo da mensagem (“Mudou o meio, mudou a mensagem”), e o que se deve entender como “meio quente” e “meio frio” em comunicação.

Poderá parecer estranho ao leitor, operador do direito ou estudioso do processo civil, que utilizemos aqui das teorias de um filósofo que estudou os meios de comunicação, para as fazer aplicadas ao processo civil,  um mundo tão distante daquele em que MCLUHAN pensou quando engendrou suas teorias, mas ao se dar conta de o processo civil é, ele próprio, um meio de comunicação, perceberá como  essas teorias permitem que  se possa compreender o que está em questão quando se implantou o meio eletrônico ao processo civil, que importantes mudanças estão a ocorrer, e o que está por detrás daquilo que a princípio poderia parecer apenas uma simples mudança do processo civil do meio físico ao meio eletrônico. Poderíamos dizer, parodiando SHAKESPEARE, que há mais coisas entre um meio e outro do que pode imaginar nossa vã filosofia.

“O meio é a mensagem”, assim MCLUHAN começa seu livro “Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem”: “Numa cultura como a nossa, há muito acostumada a dividir e estilhaçar todas as coisas como meio de controlá-las, não deixa, às vezes, de ser um tanto chocante lembrar que, para efeitos práticos e operacionais, o meio é a mensagem”. Nesse contexto, MCLUHAN observa que o conteúdo de qualquer meio ou veículo é sempre um outro meio ou veículo, ou seja, que o meio é a mensagem, “porque é o meio que configura e controla a proporção e a forma das ações e associações humanas”. Assim, ao contrário do que se pode imaginar, a mudança de um meio, qualquer que seja essa mudança, mais intensa ou não,  provoca sempre uma mudança no conteúdo da mensagem, e esse novo conteúdo é sempre um outro meio. O que aplicado ao nosso processo civil, significa dizer que a mudança do meio físico do processo civil ao meio digital produziu uma importante mudança no conteúdo do processo civil, e esse conteúdo é, ele próprio, um outro meio. E se mudou o meio, mudou a mensagem.

O Legislador e uma boa parte da doutrina insistem, entretanto, em quererem dizer que não houve nenhuma importante modificação no processo civil, que continua o mesmo, apenas que veiculado por um meio eletrônico, quando antes se tinha o meio físico. Mas como diz MCLUHAN, “O ‘conteúdo’ de um meio é como a ‘bola’ de carne que o assaltante leva consigo para distrair o cão de guarda da mente”, e que “O efeito de um meio se torna mais forte e intenso justamente porque o seu ‘conteúdo’ é um outro meio”. Estamos a lidar, portanto, com um outro processo civil, sobretudo depois que o CPC/2015 entrou em vigor.

E uma das principais mudanças no conteúdo do novo processo civil brasileiro está em que ele não é mais um “meio frio” como era na feição que o CPC/1973 lhe havia dado. Para MCLUHAN, os meios de comunicação ou são um meio quente ou um meio frio: “Um meio quente é aquele que prolonga um único de nossos sentidos e em ‘alta definição”. Alta definição se refere a um estado de alta saturação de dados. (…). É por isso que “os meios quentes não deixam muita coisa a ser preenchida ou completada pela audiência”. Se compararmos o processo civil quando era escrito, tal como ele estava estruturado no CPC/1973, perceberemos como o trabalho do juiz dependia necessariamente daquilo que as partes e seus advogados desempenhavam no processo, cujo papel era assim o de preencher o que faltava, porque havia muita coisa sobre o que não se tinha, e não se podia ter qualquer definição antecipada. Exatamente o que não ocorre com o processo civil eletrônico, porque mudou sua mensagem: o processo civil eletrônico passou a ser um meio quente, porque há muita coisa predefinida pela jurisprudência com as súmulas e teses vinculantes, e por isso há muito menos participação das partes e de seus advogados na construção da decisão judicial, a ponto mesmo de, ironicamente, poder-se dispensar a presença das partes e de seus advogados, como se houvesse um processo civil só com o juiz, ou mesmo sem ele, já que não lhe restou muita coisa em que pensar.

Ao tratar dos meios quente e frio, MCLUHAN utiliza-se como exemplo da estórias policiais, para observar que nelas o autor intencionalmente deixa muitos detalhes de fora da narrativa, precisamente para que o leitor, atuando como um co-autor, preencha a estória. O processo civil eletrônico atua de modo diametralmente oposto: sua mensagem é a de que as partes devem interferir o menos possível. Esse é o conteúdo do novo processo civil brasileiro. Basta ver o grande número de vezes em que os juízes de maneira geral aplicam a técnica do julgamento antecipado da lide.

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