Sem muito alarde, como convém ao governo e à elite econômica, introduziu-se com a Lei federal 14.905/20024 no enunciado do artigo 406 do Código Civil uma regulação de cunho econômico, ao estabelecer-se que:
“A taxa legal corresponderá à taxa referencia do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic), deduzido o índice de atualização monetária de que trata o parágrafo único do art. 389 deste Código
“A metodologia de cálculo da taxa legal e sua forma de aplicação serão definidas pelo Conselho Monetário Nacional e divulgadas pelo Banco Central do Brasil.
“Caso a taxa legal apresente resultado negativo, este será considerado igual a 0 (zero) para efeito de cálculo dos juros no período de referência”.
Com isso, o Legislador conseguiu atingir três objetivos: o primeiro, o de que se estabelece, como força de norma legal, que os juros de mora devem ser calculados com base na taxa “SELIC”; o segundo, o de que cabe ao Conselho Monetário Nacional, órgão do Banco Central do Brasil, a competência exclusiva para determinar qual será a taxa “SELIC”. Perguntará então o leitor, qual terá sido o terceiro objetivo?
Esse terceiro objetivo curiosamente não trata dos juros de mora, mas sim dos juros remuneratórios. Mas o atento leitor certamente perceberá a relação que se deve estabelecer entre a modificação no Código Civil, o tema dos juros remuneratórios e o objetivo do Legislador, que é o de transformar o Banco Central em uma referência obrigatória aos juízes e tribunais quando estejam a tratar dos juros, sejam os de mora, sejam os remuneratórios, não deixando nenhum espaço a qualquer discricionariedade judicial.
Com efeito, consolidou-se na jurisprudência brasileira a tese jurídica de que, em ações nas quais se controverte quanto aos juros de mora a serem aplicados em contratos bancários, o juiz e o tribunal devem obrigatoriamente adotar como parâmetro a tabela que é construída pelo Banco Central do Brasil, de maneira que, segundo a tese adotada pelo Superior Tribunal de Justiça firmada no bojo da técnica dos recursos repetitivos (ou seja, com efeito vinculante), se a instituição financeira está a cobrar juros remuneratórios que não superam uma vez e meia as taxas que compõem a tabela fixada pelo Banco Central, não há abusividade, não havendo necessidade sequer de se produzir a perícia. E assim serenou a jurisprudência.
Sucede, contudo, que o Comitê de Política Monetária (COPOM) tornou evidente na semana passada, ao aumentar a taxa básica dos juros, de que esse aumento era necessário para controlar a expectativa inflacionária. Em um tom duro, como classificaram os economistas, o COPOM, para não deixar nenhuma dúvida, explicitou:
“A conjunção de um mercado de trabalho robusto, política fiscal expansionista e vigor nas concessões de crédito às famílias segue indicando um suporte ao consumo e consequentemente à demanda agregada”, e que por tais razões a taxa dos juros deveria ser aumentada, não apenas agora, mais em um futuro bastante próximo. (Aposta-se no mercado que em novembro a taxa chegará a 11,25% ao ano.)
Está claro, portanto, que a taxa de juros moratórios e remuneratórios é uma obra de pura ficção do Banco Central do Brasil, que a pode manipular da forma como queira e para alcançar finalidades que em nada são proporcionais à ideia de que os juros são extraídos de uma realidade puramente econômica, sobre a qual não pode haver nenhuma ingerência. Não há dúvida, a partir do que tornou público o Banco Central, que há um importante componente político na formação dos juros, tanto dos de mora, quanto em especial dos remuneratórios.
Tratando-se, pois, de uma mera ficção, por qual razão se pode impedir que o consumidor queira discutir judicialmente acerca das reais taxas de juros remuneratórios que lhe foram cobradas, e que para tanto possa produzir perícia, com o que poderá demonstrar que o que lhe foi cobrado não é senão o resultado da mesma ficção de que o Banco Central se utiliza?