Há uma proverbial vaidade dos juristas, que fielmente acreditam que tudo o que o Direito cria em termos de teoria é produto exclusivo de ideias construídas no e pelo mundo jurídico, e que nenhuma outra ciência, nem mesmo a Filosofia, pode trazer qualquer contribuição, quanto mais a possibilidade de que uma teoria jurídica possa ser construída, desde sua formação, com ideias que não tenham uma fonte exclusiva no Direito. Assim ocorre em especial com o princípio da proporcionalidade. Quem lê a obra do jurista alemão, ROBERT ALEXY, é levado a concluir que tudo o que está na base da construção do princípio da proporcionalidade é o resultado de uma criação da jurisprudência e da doutrina. Os juristas, com efeito, são levados a pensar que o Direito possui um saber que lhe basta. Não sei se lhes deva dizer como Eclesiastes o poderia dizer melhor: “Vaidade, Vaidade, tudo é vaidade”.
O princípio do proporcionalidade poderá comprovar que, em muitas das teorias jurídicas o Direito não as criou, nem as podia ter criado simplesmente pelo fato de o Direito, por uma natural limitação, não poder olhar para além daquilo que seus olhos lhe permitem ver. Apenas a Filosofia tem o poder de olhar mais longe, e desse poder se utilizou para engendrar aquilo que viria depois a ser tomado no campo do Direito como o princípio da proporcionalidade, e do qual a jurisprudência e a doutrina vem fazendo uso.
A construção do princípio da proporcionalidade, com efeito, foi realizada com o aproveitamento direto das ideias de MARX e de seu método dialético e isso somente poderia ser engendrado por um filósofo que tivesse o pleno conhecimento desse método e de um extenso número de situações para as quais se poderia utilizar do método dialético. O filósofo e historiador de ideias de nacionalidade russa, ISAIAH BERLIN (1909-1997) fora convidado para proferir um ciclo de palestras nos Estados Unidos e resolveu falar sobre “os dois conceitos sobre a Liberdade”, como ele viria a denominar o tema. Á ocasião, BERLIN havia feito apenas anotações e foi com base nelas que discorreu sobre o tema, vindo muito tempo depois a reuni-las para escrever o ensaio que aparecia então com o emblemático título “Dois Conceitos sobre a Liberdade”.
Esquecia-me dizer que BERLIN fora biógrafo de MARX, e ainda hoje está dentre os melhores biógrafos do autor de “O Capital”. Evidentemente, para escrever a biografia BERLIN estudou a fundo os escritos e a obra de MARX, e isso lhe propiciou pudesse conhecer com detalhes o método dialético de MARX, e foi esse método que lhe permitiu engendrar os dois conceitos sobre a Liberdade, fonte direta daquilo que, posteriormente, a jurisprudência e a doutrina se utilizariam para a elaboração com maior densidade do que conhecemos hoje como o princípio da proporcionalidade.
Mas o que é o método dialético de MARX? Utilizaremos de um especialista em Marx, sempre lembrado por SARTRE: JEAN-YVEZ CALVEZ, cuja obra “O pensamento de Karl Marx” é ainda hoje de fundamental importância para todos aqueles que querem conhecer o pensamento de MARX, ainda que para o rejeitar. O livro “O pensamento de Karx Marx”, salvo engano, não foi publicado no Brasil, mas dispomos de uma tradução para a Língua Portuguesa feita pela livraria Tavares Martins, do Porto. No original, o livro possui um só volume e tem o título “La Pensée de Karl Marx”, publicado pela Éditions du Seuil, editora francesa, a mesma aliás que publicou o primeiro livro de ROLAND BARTHES, “O Grau Zero da Escrita”, de que já falamos em uma publicação anterior.
Em Portugal, o livro do padre CALVEZ saiu em dois volumes e o segundo volume trata da Dialéticam e logo no início desse volume CALVEZ, com mão de mestre, resume o que formam as proposições marxistas, dizendo o seguinte:
“O saber é dialético. É um movimento de enriquecimento que procede de um progresso através das contradições: a contradição força os dois parceiros da discussão a colocarem-se num nível superior, donde poderão encontrar a adequação das suas duas verdades parciais. Ao contrário da simples abstração, este método é fecundo, porque permite o progresso indefinido do conhecimento”.
Precisamente o que pensou BERLIN em 1958, quando afirmou que a liberdade está a todo o tempo a colidir com outros direitos e que por isso é necessário criar uma forma de solucionar esse problema concreto:
“(…) o sacrifício não é o aumento do que está sendo sacrificado, a saber a liberdade, por maior que seja a necessidade moral ou a compensação pelo sacrifício. Tudo o que é é: liberdade é liberdade, não é igualdade, equidade, justiça ou cultura, felicidade humana ou uma consciência tranquila. Se minha liberdade ou a de minha classe ou nação depende da desgraça de outros seres humanos, o sistema que promove tal coisa é injusto e imoral. Mas se restrinjo ou perco a minha liberdade para diminuir a vergonha dessa desigualdade, e com isso não aumento materialmente a liberdade de outros, ocorre uma perda absoluta de liberdade. Isso pode ser compensado por um ganho em justiça, felicidade ou paz, mas a perda permanece, e é uma confusão de valores dizer que, embora minha liberdade ‘liberal’, individual seja jogada fora, algum outro tipo de liberdade – ‘social’ ou ‘econômica’ – é aumentada. Ainda assim continua verdadeiro que a liberdade de alguns deve ser às vezes restringida para assegurar a liberdade de outros. Com base em que princípio isso deveria ser feito? Se a liberdade é um valor sagrado, intocável, não pode haver tal princípio. Um ou outro de tais princípios ou regras conflitantes deve ceder, pelo menos na prática: nem sempre por razões que podem ser claramente expressas, quanto mais generalizadas em regras ou máximas universais. Ainda assim, um compromisso prático tem de ser encontrado”.
Esse “compromisso prático” de que fala BERLIN é o que deu origem ao princípio da proporcionalidade, que toma de empréstimo o método dialético de MARX, ao permitir que o Poder Judiciário, diante de uma colisão entre princípios e direitos, decida de modo racional e em concreto (de acordo com as circunstâncias do caso em concreto) o que prevalecerá para aquele caso. Das contradições, ou seja, da colisão no mundo do Direito entre dois ou mais direitos subjetivos é que o Poder Judiciário encontra o material para a solução dialética. O saber, como enfatizava MARX, é dialético, e o saber jurídico não constitui exceção à essa regra.