Em seu livro “Questão de Método”, SARTRE observa:
“A Filosofia aparece a alguns como um meio homogêneo: os pensamentos nascem nele, morrem nele, os sistemas neles se edificam para nele desmoronar. Outros consideram-na como certa atitude cuja adoção estaria sempre ao alcance de nossa liberdade. Outros ainda como um setor determinado da cultura. A nosso ver, a Filosofia não existe; sob qualquer forma que a consideremos, esta sombra da ciência, esta eminência parda da humanidade não passa de uma abstração hipostasiada. De fato, o que há são filosofias. Ou melhor – pois não encontrareis nunca, em um momento dado, mais do que uma que seja viva – em certas circunstâncias bem definidas, uma filosofia se constitui para dar expressão ao movimento geral da sociedade; e, enquanto vive, é ela que serve de meio cultural aos contemporâneos. Este objeto desconcertante apresenta-se ao mesmo tempo sob aspectos profundamente distintos cuja unificação opera constantemente”.
Adotando, pois, uma das filosofias possíveis, tentaremos esboçar aqui uma ideia central do sistema processual que foi introduzido pelo CPC/2015, cuja vigência já há sete anos permite que compreendamos se aqueles objetivos que o Legislador quis alcançar, tanto aqueles que foram explicitados na “Exposição de Motivos”, quanto aqueles velados, se esses objetivos estão ou não a ser alcançados. Avançaremos com a observação de que, dentre esses objetivos, não há dúvida de que o Legislador deu total importância ao da segurança jurídica.
Importante observar, ainda seguindo a percuciente observação de SARTRE, de que “os métodos modificam-se porque são aplicados a objetos novos”, o que nos leva a considerar que se poderia pensar em adotar outros métodos de análise, quiçá aquele de que se utilizaram os processualistas que escreveram sobre o CPC/1973 durante o tempo em que estivera em vigor aquele código. Mas esse método é hoje inadequado, porque a sociedade tornou-se muito mais complexa do que era ao tempo em que o CPC/1973 vigorava, mesmo após as várias mudanças que enfrentou ao longo do tempo, muitas das quais engendradas como um meio de salvação que o Legislador encontrara para manter a vigência de um código de processo civil que, embora ideado por um processualista de tomo, como era BUZAID, fora pensado para atuar em uma sociedade muito mais próxima daquela que foi descrita por RAIMUNDO FAORO em seu clássico livro “Donos do Poder”: uma sociedade arcaizante e dominada essencialmente por grupos. Hoje, se é fato que a nossa sociedade é muito mais atomizada e plural, isso não significa que os grupos de pressão tenham se diluído a ponto de não terem o mesmo poder econômico e político (e jurídico) que possuíam àquele tempo. O CPC/2015, ele próprio, é o exemplo de que esses grupos de pressão continuam a existir, e seu poder aumentou consideravelmente, mas sem eliminar o poder da sociedade.
Basta considerar a importância que o Legislador do CPC/2015 dá à segurança jurídica. É evidente que o Legislador fez todo o possível, e a rigor até mesmo o “impossível juridicamente”, para impor aos juízes em geral uma cega obediência a decisões emanadas de tribunais de superposição, com o que pretende transformar os juízes em “chanceladores” de decisões desses tribunais. O CPC/2015 quer vedar que, em certos temas (que são todos temas econômicos), os juízes possam pensar. Devem decidir, mas não devem pensar, esse é o verdadeiro mote do CPC/2015.
Mas o preço cobrado na obtenção dessa segurança jurídica é muito alto para um Estado Democrático de Direito, que é o preço de retirar a livre convicção do juiz sobre as causas que lhe toquem julgar. O Legislador, pressionado por grupos econômicos, contudo, resolveu pagar esse preço, e as consequências não tardaram a chegar, porque dentre os predicados que são imanentes à atividade do juiz no processo radica na liberdade de convicção, sem a qual não pode haver independência do juiz. E como o grau de confiança da população em geral no Poder Judiciário baseia-se sensivelmente na percepção da independência do juiz, quanto menor esta, menor por óbvio é a confiança que as pessoas depositam no Poder Judiciário. A propósito, recente estudo realizado pela Fundação Getúlio Vargas confirma o acentuado grau de descrédito das pessoas na Justiça Brasileira. Segundo essa pesquisa, 61% dos brasileiros dizem não acreditar na Justiça. Esse é o preço que o CPC/2015 está a pagar com estratagemas que têm o claro objetivo de obstar que os juízes pensem.
Então se poderia dizer que há aí uma contradição, porque se as estatísticas demonstram que o número de ações está aumentando, isso significaria que há uma maior confiança no Poder Judiciário brasileiro. Não necessariamente. As pessoas socorrem-se do processo porque ruim com ele, pior sem ele, o que significa dizer que, se é verdade, como diz o provérbio, que a esperança é a última que morre, isso também é verdadeiro no campo do processo civil, porque o litigante ainda tem consigo a esperança de que alguma coisa possa mudar, embora ele no íntimo não acredite muito nisso, e isso é o que explica o aumento considerável no número de ações e de recursos, muitos deles dirigidos aos tribunais de superposição.
De todo o modo há sempre a esperança de que algum juiz possa reconhecer a inconstitucionalidade no conteúdo das teses jurídicas, como são chamadas as “decisões” vinculantes e obrigatórias impostas por tribunais de superposição. Está aí, aliás, uma fresta que o Legislador do CPC/2015 não conseguiu eliminar, que radica no manter o poder de os juízes declararem, por controle difuso, a inconstitucionalidade de normas e agora também de “decisões vinculantes”, que a rigor são normas, como qualquer lei, na medida em que são “normativas”, regulam de modo genérico.
Como os grupos de pressão deram-se conta de que, em um Estado de Direito, não se pode impunemente retirar dos juízes o poder de controlar a constitucionalidade por meio de um sistema de controle difuso, que isso significaria quebrar a espinha dorsal do Estado de Direito, com momentosos efeitos, tiveram que aceitar que se mantivesse esse poder aos juízes, impondo-lhes apenas as teses jurídicas obrigatórias. O tempo, contudo, vem demonstrando que ainda há juízes no Brasil que pensam, e que, ao pensarem, questionam, refletem – e decidem contra o poder.
Poder-se-ia pensar que isso existiria se não tivéssemos uma sociedade plural? Absolutamente não. O que explica que é a nossa sociedade que está a moldar o processo civil brasileiro, buscando implementar um processo justo para uma sociedade justa.
Quanto à filosofia que o Legislador quis implantar, essa filosofia não prevalecerá. O tempo tratará de comprovar.