O Direito (refiro-me ao Direito positivo, ou seja, às leis em vigor em um determinado país) possui o raro dom de fazer possível o impossível, mas também o de fazer impossível o que era possível. Basta que se queira.
Algumas doutrinas jurídicas, com efeito, foram engendradas exatamente para operarem em um terreno que vai do possível ao impossível, um terreno que é tão elástico quanto as normas legais. Lembremos da denominada “teoria da reserva do possível”, que, em linhas gerais, significa que o Estado pode ser desobrigado pelo Poder Judiciário a cumprir uma obrigação que lhe foi imposta quando não há recursos financeiros que permitam ao Estado cumprir a ordem judicial. Melhor seria, aliás, que se denominasse essa teoria como a “teoria do impossível”, porque se é possível cumprir uma ordem judicial, é suficiente que se a faça cumprida, e nada mais, sem qualquer reserva, portanto.
E o campo de atuação da teoria do impossível é vasto. Vai do Direito Tributário ao Direito Processual Civil. Assim, se o Legislador (ou melhor, o Poder) entende que é “impossível” instituir um tributo, tantas serão as dificuldades logísticas e de outra qualquer ordem, que é melhor não o criar. Por exemplo, o imposto sobre grandes fortunas. É tão difícil saber aferir que possui uma “grande fortuna”, tantas são as variáveis econômicas que se podem adotar para essa classificação, se devemos aferir a grande fortuna pela renda per capita norte-americana ou alemã, ou pela nossa, que é mesmo impossível saber quem é rico no Brasil. Poder-se-ia até, em tom de brincadeira, dizer que podemos saber que é um rico no Brasil, mas é difícil defini-lo, tanto quanto sucede com o tempo …
Vamos agora a um exemplo tirado do processo civil. São tantos os parentes que um juiz pode ter, entre filhos, enteados, ex-cônjuge, cunhado, ex-cunhado, enteados, enfim um universo gigantesco que é próprio às famílias brasileiras (fenômeno, aliás, que GILBERTO FREYRE estudou, e que, vivo hoje, talvez estudasse mais concentradamente sobre as famílias jurídicas), que de fato é difícil, digo mais, impossível saber se o juiz de um processo não pode ter algum parente seu atuando como advogado no processo, ou fazendo parte de um escritório que esteja atuando no processo, tanto são os parentes que formam o fenômeno que envolvem as famílias jurídicas , fenômeno, aliás, que é relativamente recente no Brasil. Lembremos, aliás, de um emblemático caso em que um desembargador falecido conseguiu fazer com que dois filhos, que não eram magistrados, fossem nomeados como tais. A demonstrar que se o Direito consegue operar com o sobrenatural, o que ele não faz com o impossível.
É, pois, gigantesco o poder do Direito, a ponto mesmo de tornar possível o que era impossível, quando o dinheiro surge do nada ou uma lei retroage inesperadamente. Enfim tudo pode acontecer no Direito, e aí está aí como ele se aproxima de uma ficção kafkiana.