Com inegável acerto, o Legislador trouxe para o texto do CPC/2015 a regulação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica (artigos 133/137), beneficiando-se sem dúvida de uma experiência que, construída sobretudo a partir dos anos noventa no Brasil, lobrigava a necessidade de que um código de processo civil regulasse o tema, o que não ocorreu durante o longo tempo em que esteve em vigor o CPC/1973. O Legislador do CPC/2015 rendeu-se ao fato de que não são apenas os efeitos processuais que justificariam o trazer para o texto do código de processo civil o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, senão que em especial o fato de ser indispensável a tutela jurisdicional nesse tipo de situação.
Mas o Legislador não foi tão longe quanto deveria. Faltou-lhe dar ao instituto da desconsideração da personalidade jurídica um recurso processual ajustado a seu novo status. Estabelece o artigo 136 do CPC/2015 que o incidente será resolvido por meio de uma decisão interlocutória, o que significa dizer que, no sistema recursal adotado por esse código, o recurso a ser manejado é o agravo de instrumento. (E se a decisão tiver sido proferida relator em grau recursal, então o recurso é o agravo interno.)
Evidentemente que o agravo de instrumento não possui o mesmo campo cognitivo que é próprio ao recurso de apelação, este o recurso cujo campo cognitivo é, no campo do processo civil, o mais amplo possível, abrangendo questões fáticas e jurídicas e devolvendo ao conhecimento do tribunal tudo aquilo sobre o que a demanda versou em primeiro grau. Não é assim no agravo de instrumento, cujo campo cognitivo é sensivelmente mais diminuto, o que, de resto, quadra com a origem histórica desse recurso e mesmo com a sua natureza.
JOÃO BONUMA, em sua preciosa obra “Direito Processual Civil”, hoje infelizmente desconhecida das novas gerações, fez um detalhado estudo sobre o agravo, identificando sua origem no direito português e analisando suas características quando transposto ao nosso direito positivo. BONUMA cuida ressaltar que o legislador brasileiro vem, ao longo do tempo, fazendo um “uso indevido” do agravo, criando uma anomalia no uso desse recurso, utilizando-o para decisões que, a rigor, deveriam ser enfrentadas pelo recurso de apelação. O CPC/2015 demonstra o acerto dessa observação.
É o que sucede com o agravo de instrumento, pois, a ser interposto quando se trata de decisões que decretam a desconsideração da personalidade jurídica, ou quando rejeitam essa desconsideração. Inúmeras podem ser, com efeito, as questões fáticas que devem ser analisadas nesse tipo de “incidente”, como infelizmente é denominado pelo CPC/2015 o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, gerando a falsa impressão de que se trataria de algo de somenos importância ou que poderia ser facilmente resolvido pelo juiz, quando na grande maioria dos casos o que acontece é exatamente o oposto disso, obrigando o juiz a sindicar com profundidade questões de conteúdo fático como as que dizem respeito, por exemplo, à formação de um grupo econômico, impondo ao magistrado realize uma detida análise sobre aspectos contábeis, enfrentando toda uma série de controvérsias fático-jurídicas que são frequentes quando se trata de analisar o uso que se fez da pessoa jurídica.
Destarte, é incorreto chamar de “incidente” o que, em realidade, corresponde a uma controvérsia que deveria ter lugar em verdadeiro processo de conhecimento, dotado de uma cognição plena e exauriente própria ao tipo de profundidade e extensão que determinadas matérias comportam e exigem, como é comum ocorrer na desconsideração da personalidade jurídica.
O CPC/2015, contudo, qualifica como “decisão interlocutória” a decisão pela qual o juiz deve decidir se decreta ou não decreta a desconsideração da personalidade jurídica, estabelecendo por consequência que o recurso a ser manejado é apenas o de agravo de instrumento, por considerar que, como o “incidente” da desconsideração da personalidade jurídica trata de uma “questão pontual”, o agravo de instrumento seria o azado recurso a ser utilizado. Mas em grande parte das vezes a desconsideração da personalidade jurídica não versa sobre uma questão pontual, tantos são as questões fáticas e jurídicas com o que o juiz terá que lidar, em um ambiente de cognição que, sobre ser pleno, deve ser exauriente, sob pena de não se propiciar às partes a garantia a um processo justo, entendendo-se como tal um processo que permita às partes a discussão em um grau de cognição condizente com o tipo de matéria discutida no processo, o que passa também pelo direito a um azado recurso.
O agravo de instrumento não tem, e não pode ter o mesmo grau de cognição que é próprio ao recurso de apelação, porque se o tivesse não seria um agravo, seria uma apelação. Há, portanto, uma inconstitucionalidade no artigo 136 do CPC/2015 e que radica no fato de o Legislador infraconstitucional ter colocado sob injusta desproteção jurídico-processual a esfera dos litigantes, ao lhes suprir um recurso cujo campo cognitivo deve ser ajustado à natureza jurídica, características e tipo de questões enfrentadas pela decisão. No caso do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, esse recurso deve ser o da apelação, pois que assim exige o princípio do devido processo legal, em cujo conteúdo está enfeixada a garantia a um processo justo.
Há ainda por lembrar, a reforçar a inconstitucionalidade do artigo 136 do CPC/2015, que, em sendo agravo de instrumento o recurso previsto, não cabe sequer a sustentação oral, a não ser que se trate de uma tutela provisória de urgência pela qual se tenha decretado (provisoriamente) a desconsideração da personalidade jurídica, ou mais propriamente de seus efeitos no processo. O litigante, sobretudo aquele que tem em seu desfavor uma decisão que decreta a desconsideração da personalidade jurídica, está em uma delicada situação no processo, momentosos os efeitos que uma decisão dessa natureza produz.