Toda norma legal – e com a norma constitucional não sucede nada diferente – deve ser interpretada, ainda que a norma pareça ser clara, ou mesmo claríssima. Portanto, impossível, não apenas por uma questão lógica, deixar-se de fazer a interpretação. Intepretação cujo resultado depende de vários aspectos, dentre os quais o de natureza histórica, o que explica que uma mesma norma legal receba ao longo do tempo interpretações diversas, e muitas vezes totalmente dissociadas. Mas pode ocorrer um fenômeno ainda mais interessante: é possível, com efeito, que uma norma legal produza sentidos bastante elásticos conforme os interesses em disputa em um mesmo momento histórico. É o que ocorre comumente com a expressão “notável saber jurídico”, expressão que está na grande maioria de nossas constituições e que constitui um dos indispensáveis requisitos para que alguém possa ser indicado ao cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal (CF, artigo 101).
Com efeito, ao longo do tempo extraímos dessa expressão “notável saber jurídico” um sentido que lhe parecia o mais elementar, qual seja, o de que se trataria de qualquer que tivesse, por meio de obras escritas, demonstrado um grau de excelência no domínio da Ciência Jurídica, sobretudo em sua teoria. Esse tipo de interpretação rigorosa permitiu que um jurista de escol como NELSON HUNGRIA, autor de inúmeras e consagradas obras de Direito Penal, fosse nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal. O mesmo tipo de interpretação deu azo a que um outro jurista, este da área do processo civil, fosse nomeado. Refiro-me a MOACYR AMARAL SANTOS. E ainda um jurista de um inegável conhecimento na área do direito tributário, caso de ALIOMAR DE ANDRADE BALEEIRO. Parece até que essas nomeações mostravam como era fácil interpretar a expressão “notável saber jurídico”. Noutras ocasiões, o jurista não possuía um acerco de obras importantes, mas havia se destacado como um emérito juiz, como sucedeu no caso da indicação de LAUDO DE CAMARGO, que brilhantemente atuou no Supremo Tribunal Federal entre 1932 a 1951, recebendo de seu colega na Corte, MOACYR AMARAL SANTOS, o epíteto de “o juiz”, como a demonstrar se tratasse de um grande juiz, o que dispensava qualquer outro qualificativo.
Mas essa mesma expressão “notável saber jurídico” foi relativizada ao sabor das conveniências em diversas ocasiões, o que propiciou que tivéssemos a nomeação de ATAULFO DE PAIVA, que de jurista tinha só a formação jurídica, como de literato também só possuía o título de imortal da Academia Brasileira de Letras.
E de relativização em relativização, o certo é que muito pouco ficou daquele rigor com que a norma constitucional foi pensada. Assim, por “notável”, que nos bons dicionários significa “digno de nota, de atenção, de renome”, o que conduziria a exigir que o indicado tivesse produzido obras jurídicas de qualidade, hoje se aceita que não as obras, mas a pessoa indicada seja conhecida. Ou seja, não é o saber jurídico que deve ser “notável”; o indicado é que o deve ser.
Quanto ao “saber jurídico”, como o sistema educacional brasileiro trabalha com um modelo baseado na presunção de que o formado sabe o objeto da ciência em que se formou, aqui também se deve operar com a mesma presunção, de modo que se o candidato é formado em Direito, deve-se presumir que ele saiba Direito, e que tenha um “saber jurídico”, ainda que elementar.
Em que momento, ao longo de nossa história, abrandou-se o rigor com que a referida norma constitucional foi abranda em sua interpretação, está o leitor a perguntar-se. Como dito no início, em um mesmo momento conferiu-se à expressão “notável saber jurídico” interpretações bastante variadas, a ponto mesmo de se poder concluir que, quando se tratava verdadeiramente de um jurista de escol, não se interpretava a norma constitucional, senão que se reconhecia apenas o óbvio, como se deu com a nomeação do emérito romanista e civilista MOREIRA ALVES para o Supremo Tribunal Federal. Não era o jurista que se orgulhava de pertencer à Corte, mas esta é que se orgulhava de o ter em seus quadros.