Como o projeto sobre as “fake news” está a ser discutido, tanto no âmbito do Congresso Nacional, quanto no Supremo Tribunal Federal, havendo evidentemente um interesse público na questão, considero necessário trazer ao debate mais dois aspectos, somados àqueles três episódios de que tratamos em uma postagem anterior.

Esses dois aspectos interligam-se, de maneira que começarei com o fato para chegar ao mundo das ideias.

O fato nos vem narrado por MARIA JOÃO MARQUES em sua coluna no jornal “O Público”, de Lisboa, edição de hoje.

Um escritor português, AFONSO REIS CABRAL, tomara conhecimento de uma história real envolvendo uma mulher trans que era obrigada a se prostituir nas ruas da cidade do Porto, e ali vivia sob a pressão e controle de um grupo de rapazes, e ao final a mulher trans acaba morta. O livro, que tem o título “Pão de Açúcar”, retrata a vida dessa mulher trans e as vicissitudes pelas quais passou. Pois bem, o livro despertou o interesse de uma editora norte-americana, que, contudo, ao final decidiu não publicá-lo nos Estados Unidos, conforme informou ao escritor, dizendo-lhe o seguinte, como razões para a recusa: “A crítica a Pão de Açúcar foi maioritariamente boa, mas um colega meu expressou preocupações por uma pessoa cis estar a escrever sobre uma pessoa trans – outro assunto de alta sensibilidade por cá. Tentei encontrar uma pessoa LGBTQ falante de português para escrever um relatório de sensibilidade, mas não encontrei nenhum que falasse português. Então, por estas razões, decidi passar”.

Esse é o fato, ao qual se deve juntar, já no mundo das ideias, o que escreveu SUSAN SONTAG na década de setenta, quando, com sua habitual lucidez, advertia que chegaria um tempo em que cada pessoa possuiria seu jornal, seu próprio jornal, em que apenas as suas ideias – a daquele leitor – estariam ali a ser escritas e lidas. O leitor seria, ele próprio, um “revisor de sensibilidade”, como diz MARIA JOÃO MARQUES, que, na linha de SONTAG, adscreve: “A pior consequência destas decisões editoriais e comerciais sobre livros nem é o atentado que fazem à produção artística e literária. É a vontade de exterminar o debate. De não admitir conversa. De não tolerar a opinião e o pensamento diferente, mesmo o empático. Se o debate corre o risco de não se poder ganhar com a contraposição de ideias, então impede-se que as ideias circulem. É como se deixassem de existir. Força-se o silêncio de outros”.

Exatamente como havia lobrigado SUSAN SONTAG, pensando sobre o dia em que o controle das ideias seria tão rígido que não haveria espaço para que as ideias convivam. Cada qual teria, e terá suas ideias. O que talvez SONTAG não pudesse supor àquele tempo, em que não existiam as redes sociais, é o papel do Estado nesse assunto.

Portanto, pode-se saber de já o que sucederá se for aprovado o projeto de lei que impõe rigoroso controle do conteúdo que é publicado nas redes sociais, sobretudo diante da intenção do governo federal de criar um órgão administrativo que fará o controle (rectius: censura), decidindo o que poderá ou não ser publicado.

Registra a história que HITLER tinha uma completa compreensão acerca do “perigoso” poder que as ideias têm, e os riscos  de se ter um escritor que, em seu gabinete de trabalho, possa livremente pensar e escrever. A perseguição ao escritor PAUL THOMAS MANN e mesmo a pressão sobre o genial filósofo MARTIN HEIDEGGER, demonstram como as ideias são perigosas, para além daquilo que imaginamos.

 

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