No magistral prólogo que escreveu ao livro de ÉMILE BRÉHIER, “Historia de la Filosofia” (sem tradução para o português), ORTEGA Y GASSET, com a sua habitual lucidez, escreve que a História é a ciência da transição, porque tudo na história é e está sob transição, com o registro de alguns momentos de decadência, embora seja necessário observar, diz o genial filósofo espanhol, que a decadência é um diagnóstico parcial, quando não é um insulto que dedicamos a um determinado período da história, porque nas épocas chamadas de decadência algo decai, porém outras coisas germinam.

A rigor, o Direito é também uma ciência de transição, porque tanto quanto sucede com a História,  no Direito tudo que nele acontece também é um reflexo e efeito de uma constante  transição, em que, diante de inevitáveis momentos de decadência,  em que algo está a decair, outras coisas estão a florescer.  É o que estamos a viver em nossa História e em nosso Direito positivo, depois que tivemos na semana passada o triste e gravíssimo episódio da invasão a prédios em que simbolicamente estão instalados os nossos três Poderes, estrutura de nossa República tal como ela está estabelecida na Constituição de 1988.

Em nossa história, conquanto tenhamos tido  episódios de invasão a prédios públicos na Capital Federal, nenhum episódio pode ser comparado em termos de gravidade ao que ocorreu, não se podendo deixar de reconhecer que a nossa Democracia, ou antes, o nosso Estado Democrático de Direito terá sido colocado diante uma situação de risco tão acentuado como foi, com efeitos que obviamente se projetam ao campo do Direito positivo.

Poderíamos, então, dizer que a nossa história e o nosso Direito positivo estariam a viver uma época de transição e de decadência?

Devemos responder tal como  observa ORTEGA Y GASSET no referido prólogo, em especial quando  afirma que, “em certas etapas os homens têm vivido com a consciência de que se encontram entre um grande passado já ruinoso e um grande porvir ainda inédito”. Precisamente o momento em que estamos a viver.

Engendrado  com a Constituição de 1988, o nosso Estado Democrático de Direito não tinha vivido até semana passada nenhum episódio em que havia sido colocado sob um grave desafio de manter-se como fora pensado e implementado. Nem mesmo a grave crise ocorrida entre 2013 e 2014 o havia colocado sob grande risco, diversamente, portanto, do que ocorre agora.

Vivemos, portanto, uma época de transição na história, e isso se aplica também a nosso Direito positivo, que tem agora a grande oportunidade de consolidar a nossa Democracia, não mais como algo meramente formal e simbólico, senão que como uma estrutura que encontra no Direito positivo mecanismos que a tornarão cada vez mais concreta – e quanto mais concreta, mais protegida, porque a sociedade passa a compreender a real importância de que a devemos manter existente e cada vez mais forte.

Para podermos compreender como nosso Estado Democrático de Direito foi engendrado, devemos recuar no tempo e fazer uma espécie de arco que se inicia em 25 de janeiro de 1984, quando em São Paulo deu-se início com grande impacto ao movimento que ficou conhecido como “Diretas-Já”, em que se lutava pela aprovação da emenda constitucional (que ficou conhecida como “Emenda-Dante”) que restaurava o direito ao voto para presidente da república, movimento surgido nos estertores da ditadura militar. Precisamente naquele 25 de janeiro de 1984, no bojo do movimento das “Diretas-Já” é que a Constituição de 1988 começou a ganhar corpo, e o fato de a “Emenda-Dante” ter sido rejeitada pelo Congresso Nacional apenas adiou a restauração de um direito, mas não obstou que se começasse a pensar seriamente no que viria a se tornar o nosso Estado Democrático de Direito, surgido efetivamente na Constituição de 1988, mas que permaneceu em um estado de latência até domingo passado, quando as pessoas em geral despertaram para o fato de que não basta que tenhamos um Estado Democrático de Direito, senão que devemos cultivá-lo todos os dias, o que significa fazer efetiva a nossa Constituição.

O   episódio da invasão e depredação aos prédios dos três Poderes da República, conquanto lamentável sob diversos aspectos, fez com que as pessoas em geral se dessem conta de que existe efetivamente uma Constituição e que é necessário protegê-la concretamente, tarefa que é da principal atribuição  de nossas Instituições, que, ao interpretá-la, devem extrair seu significado histórico de proteção aos direitos subjetivos em geral, não se podendo esquecer da feliz denominação que lhe foi dada como “A Constituição Cidadã”. Devemos, portanto,  fazer com que ela não perca essa essência.

De resto, como observa DISRAELI, uma pais não é uma entidade abstrata, cujos direitos podem se inferir por meio de uma simples operação mental: “Uma nação é uma obra de arte e um resultado do tempo”, no sentido de que a Constituição é algo vivo, que para permanecer vivo deve ser cultivado o tempo todo com o maior zelo.

Pois como dizia CHURCHILL em seu discurso na Câmara dos Comuns em 1947:  “Ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem defeito. Tem-se dito que a democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos”.

 

 

 

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