Desde o primeiro momento em que foram proclamados os resultados das urnas, surgiu uma celeuma acerca do conteúdo e alcance do “caput” do artigo 142 da Constituição de 1988. Juristas e não juristas, jornalistas e o público em geral travam desde então uma acirrada disputa na defesa daquilo que cada qual considera como o verdadeiro sentido que se pode extrair da referida norma constitucional. Para alguns, a referida norma teria atribuído às Forças Armadas o papel de um poder moderador, assim instalado a uma justa e equilibrada distância entre os Poderes constituídos, como são os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Para outros, as Forças Armadas seriam apenas mais um órgão do Estado, cuja principal atribuição, no espaço interno, está na garantia da lei e da ordem, nos exatos limites em que a lei, e apenas ela, fixa.
Eis o enunciado do “caput” do artigo 142 da Constituição de 1988: “Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.
Normas constitucionais são, em geral, normas fluidas no sentido de que seu enunciado deve ser o mais abstrato possível, o que o torna o menos resistente possível a modificações que a realidade material venha trazer ao longo do tempo, de maneira que a norma constitucional, criada em um determinado momento histórico, possa abarcar em seu conteúdo e alcance tudo o que de relativamente imprevisível o futuro possa trazer.
O conteúdo e o alcance de uma norma constitucional tendem a variar no tempo, conforme as circunstâncias da realidade circundante ao tempo em que a aplicação em concreto da norma esteja a ocorrer, o que se dá sobretudo com os princípios constitucionais, que, diversamente do que sucede com as regras, devem ser entendidos (os princípios) como um mandamento de otimização, como observa Robert Alexy. “Otimização” tem aqui o sentido comum que os dicionários registram, ou seja, “otimizar” significa criar as condições mais favoráveis ao desenvolvimento de algo. Esse é o objetivo dos princípios constitucionais, que são, por natureza, normas cujo enunciado deve ser o mais fluído possível, justamente para que possam propiciar ao intérprete um espaço adequado à aplicação da norma constitucional em face das diversas realidades concretas, muitas das quais de todo imprevisíveis ao tempo em que o Legislador pensou o enunciado da norma constitucional.
Há, portanto, uma especial importância, nomeadamente no terreno da interpretação, em juridicamente qualificar como “princípio” ou “regra” uma norma constitucional. Tratar-se-ia, pois, de um princípio ou de uma regra o enunciado do artigo 142 da Constituição de 1988?
Não se pode olvidar de que embora direcionada ao futuro, a norma constitucional tem um passado que não pode ser desconsiderado. Os fatores históricos constituem, portanto, um valioso material de que o intérprete deve se utilizar para poder estabelecer o melhor (o mais otimizado) conteúdo e o alcance de uma norma constitucional. E como uma norma constitucional tende a seguir uma certa tradição, é deveras importante que o intérprete considere o texto da norma constitucional revogada, e mesmo a tradição não apenas jurídica do país.
Destarte, se queremos saber quais são o conteúdo e o alcance da norma do artigo 142 da Constituição de 1988, devemos partir das Constituições imediatamente anteriores à de 1988, chegando, portanto, ao artigo 92 e seu parágrafo 1o. da Constituição de 1967, e antes mesmo aos artigos 176 e 177 da Constituição de 1946. Desde logo perceberemos que não houve significativa mudança no enunciado da norma que trata do papel das Forças Armadas ao longo dessas três Constituições. Vamos aos textos:
“Artigos 176 e 177 da Constituição de 1946: “As Forças armadas, constituídas essencialmente pelo Exército, Marinha e Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República e dentro dos limites da lei”. “Destinam-se as forças armadas a defender a Pátria e a garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem”.
“Artigo 92 e parágrafo 1o. da Constituição de 1967: “As Forças armadas, constituídas pela Marinha de Guerra, Exército e Aeronáutica Militar, são instituições nacionais, permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplinar, sob a autoridade suprema do Presidente da República e dentro dos limites da lei”.
(De relevo observar que o artigo 90 da Constituição de 1969 reproduziu, em linhas gerais, o texto da Constituição de 1967, apenas acrescentando que as Forças Armadas deveriam executar a política de segurança nacional.)
Note-se, portanto que, o artigo 177 da Constituição de 1946 fala na defesa da Pátria e na garantia dos poderes constitucionais, exatamente como o fazia o artigo 92 da Constituição de 1967, e tanto quanto faz o artigo 142 da Constituição de 1988. Os termos são rigorosamente os mesmos nessas três Constituições, e nelas também aparece a expressão “lei e ordem”, atribuindo às Forças Armadas a sua garantia, o mesmo sucedendo no artigo 142 da Constituição de 1988, apenas com uma pequena variação de estilo, substituindo-se “poderes constitucionais” (artigo 177 da Constituição de 1946), por “poderes constituídos” (artigo 92 da Constituição de 1967), voltando a Constituição de 1988 a usar a expressão “poderes constitucionais”, que fora utilizada no artigo 177 da Constituição de 1946.
Uma outra modificação, mas também de pouca importância, que surge com o texto do artigo 142 da Constituição de 1988 está no ter essa norma constitucional ressalvado que qualquer dos poderes constitucionais pode requerer a atuação das Forças Armadas, quando existir uma situação de risco grave à prevalência da lei e da ordem em determinadas circunstâncias em concreto. Evidentemente que, em sendo o Presidente da República a autoridade suprema das Forças Armadas, caber-lhe-á requisitar a intervenção direta das Forças Armadas, enquanto os demais Poderes devem requerer ao Presidente da República essa intervenção, o que, a rigor, estava implicitamente previsto nas Constituições de 1946 e 1967.
Do que se pode concluir que, entre a Constituição de 1946 e a de 1988, o enunciado da norma constitucional que cuida das Forças Armadas não sofreu nenhuma importante modificação, seja em seu conteúdo literal, seja no conteúdo que dele se pode extrair quando aplicados outros métodos de interpretação. Aplicado, pois, o método histórico-comparativo, constata-se que as Forças Armadas, nem mesmo durante a vigência das Constituições de 1967 e 1969, tiveram o papel de poder moderador, o que, aliás, é simplesmente comprovado pelo fato de os militares terem, em abril de 1964, insatisfeitos com as políticas adotadas pelo governo, derrubado João Goulart. Fossem um poder moderador, e encontrariam nesse poder uma forma menos traumática de modificarem aquilo que lhes parecia devesse mudar. Também é expressivo lembrar que o texto da Constituição de 1967 (redigida durante o Governo Militar instaurado a partir de 1964) limitou-se a reproduzir o que a Constituição de 1946 havia previsto quanto ao papel das Forças Armadas, a bem demonstrar que a intenção era a de manter a natureza e o papel das Forças Armadas dentro da tradição constitucional brasileira.
Especula-se que a comissão da Assembleia Nacional Constituinte, encarregada de elaborar o enunciado do que viria a se tornar o artigo 142 da Constituição de 1988, teria sofrido pressão vinda de militares e de políticos de direita. O fato, contudo, é que o enunciado do artigo 142 é, em essência, o mesmo que estava nas Constituições de 1946 e de 1967 e estavam dentro da tradição jurídica brasileira.
A questão, esta sim, importante, é perscrutar se o artigo 142 da Constituição de 1988 traz o enunciado de um princípio ou de uma regra, porque conforme a resposta à essa questão conceder-se-á ao intérprete um espaço muito maior na extração do conteúdo e alcance da norma constitucional, em que as circunstâncias da realidade circundante, consultadas, poderão ter modificado esse mesmo conteúdo e alcance ao longo do tempo, conquanto que se deva observar, entendendo-se que se trate de um princípio (e não de uma regra), que o enunciado do artigo 142 deva ser necessariamente cotejado com outros princípios constitucionais, como os que garantem o princípio do devido processo legal e o controle final de constitucionalidade como atribuição exclusiva Poder Judiciário, princípios que moldam e estruturam o nosso Estado Democrático de Direito.