Muitos leitores, mesmos aqueles que têm alguma ligação algo próxima com as obras de MICHEL FOUCAULT, à exceção por óbvio dos especialistas, ficarão surpresos em saber que o autor de “As Palavras e as Coisas” jamais escreveu um livro dedicado exclusivamente à questão do poder, embora fizesse sempre questão de ressalvar que o problema que mais lhe tocava era exatamente esse: o do poder. Na década de setenta, ele havia pensado em escrever uma teoria da justiça, mas a ideia infelizmente não foi concretizada, e o livro “Vigiar e Punir”, editado em 1975, constitui tão somente uma pequena parte sobre o que FOUCAULT refletira naquela época.

FOCAULT havia percebido que, se no século XIX, a preocupação principal era com a economia, a miséria e a desigualdade econômica, o que, aliás, forneceu material suficiente para MARX escrever sua grande obra “O Capital”, o século XX trazia um outro problema central: o poder, ou mais precisamente o excesso do poder. As grandes guerras eram a prova cabal de como o excesso de poder constituiu o  problema principal  enfrentado no século XX.

Falecido em 1984, FOUCAULT não pode assistir ao que a pós-modernidade trouxera como problema central, que continua a ser o problema do poder, mas agora deslocado para um outro eixo. É o que Direito ganhou uma importância que  não tinha, porque antes a sua atuação destinava-se ao controle dos indesejados, dos loucos ou dos presos, dos quais a sociedade livrava-se pelo Direito, como FOUCAULT observara em “A História da Loucura” e em “Vigiar e Punir”. O Direito, após a morte de FOUCAULT, ganhara um novo status: o de controle do poder central na sociedade, utilizado a seu talante por grupos de interesses, que usam esses interesses como mecanismo de pressão, e que podem se utilizar do Poder Judiciário para a satisfação de seus interesses, seja por meio de recrutamento de juízes afinados a esses mesmos interesses, seja por meio de leis que são editadas em função da proteção a determinados grupos, leis cuja interpretação é feita, como se sabe, por  juízes e tribunais.

O poder exercido pelo Poder Judiciário no controle da sociedade é o que passa a caracterizar o principal problema desde o final do século XX, e FOUCAULT certamente teria tido a sua atenção desperta para esse novo fenômeno.

De um ator coadjuvante, o Poder Judiciário, na sociedade moderna e tanto em países desenvolvidos quanto menos desenvolvidos, passa não mais a atuar  como instrumento para suprimir do convívio da sociedade os loucos e os presos. As  ambições do Poder Judiciário modificaram-se a compasso com o novo status que ganhou na sociedade moderna, em que a esfera do poder público passa a ser judicializada, e mesmo o poder discricionário, cidadela do Poder Executivo,  já não mais é intransponível, como comprova o considerável espaço em que o Poder Judiciário pode hoje ocupar quando se trata de colocar sob controle atos discricionários.

Temas antes puramente políticos, transformaram-se em temas jurídicos e judiciais, e isso está a ocorrer tanto em países da Europa ocidental, quanto nos Estados Unidos da América e no Brasil. O poder exercido pelo Poder Judiciário em suas relações com a política e com a sociedade, esse  é, portanto, o problema central do nosso século, em que a doutrina da separação de poderes exige uma reelaboração em partes essenciais dessa conhecida teoria.

Ao tempo de FOUCAULT, tratava-se de defender a sociedade em face das grandes guerras e do excesso de poder que a elas conduzira, objeto, aliás, de um curso que ele ministrou entre 1975 e 1976. Estivesse entre nós,  ele muito provavelmente manteria o título, mas analisaria como a sociedade pode se defender do controle que o Poder Judiciário assumiu como poder central, em que a recorrente questão da liberdade ressurge, mas agora sob uma nova e mais delicada perspectiva.

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