Seis anos em que está em vigor o CPC/2015 é tempo mais que suficiente para a confirmação de uma intenção que estava o tempo todo enfatizada na Exposição de Motivos àquele Código: a de afastar, tanto quanto possível e sobretudo no processo de execução, um rigoroso respeito não apenas à forma, mas às normas legais. Entre observar o que exige o princípio do devido processo legal “formal” e a efetividade da tutela jurisdicional, o CPC/2015 não tivera, desde a sua concepção como projeto, qualquer dúvida: a efetividade é o mais importante.
Podem os litigantes em geral pensar que isso terá sido pensado e feito em seu favor. Enganam-se, todavia. A clara intenção do Legislador é e sempre foi a de destravar o processo civil especialmente nos processos de execução, em que grandes empresas têm seus interesses, de modo que, suprimindo indesejadas garantias processuais (como o respeito à Lei), a nossa Economia poderia melhorar. Não que isso seja indesejável.
Mas para tudo há limites – e o limite é a lei. O que significa dizer que o poder do juiz existe na exata medida em que a lei estabelece esse limite, sobretudo quando em jogo direitos de matriz constitucional. Destarte, não pode o juiz criar instrumentos processuais que a lei não prevê, ainda que com a melhor intenção de tornar efetiva a tutela jurisdicional.
O fato é que o CPC/2015 acabou por incentivar uma desmedida desconsideração às formas, quando essas formas estão previstas na Lei não como puras formas, mas como formas que são exigidas em razão de uma garantia constitucional que está prevista no conteúdo do princípio do devido processo legal.
E assim com a ênfase dada pelo CPC/2015 à efetividade da tutela jurisdicional sobretudo no processo de execução, começaram a se engendrar soluções em benefício dos interesses do credor, mas que não encontram guarida na Constituição de 1988, que continua a exigir a previsão legal para diversas situações, não autorizando o juiz que dispense a necessidade de lei, ou que pratique ato que a lei não o autorize praticar.
Utilizar-me-ei de um exemplo e que se refere à lei 11.101/2005, que é a Lei de Falências e de Recuperação Judicial, para demonstrar como a intenção do Legislador do CPC/2015 tem projetado momentosos efeitos. O artigo 142 da lei 11.101/2005 previa em sua redação original o seguinte:
“Art. 142. O juiz, ouvido o administrador judicial e atendendo à orientação do Comitê, se houver, ordenará que se proceda à alienação do ativo em uma das seguintes modalidades:
I – leilão, por lances orais;
II – propostas fechadas;
III – pregão.
§ 1º A realização da alienação em quaisquer das modalidades de que trata este artigo será antecedida por publicação de anúncio em jornal de ampla circulação, com 15 (quinze) dias de antecedência, em se tratando de bens móveis, e com 30 (trinta) dias na alienação da empresa ou de bens imóveis, facultada a divulgação por outros meios que contribuam para o amplo conhecimento da venda.
§ 2º A alienação dar-se-á pelo maior valor oferecido, ainda que seja inferior ao valor de avaliação.
§ 3º No leilão por lances orais, aplicam-se, no que couber, as regras da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil.
§ 4º A alienação por propostas fechadas ocorrerá mediante a entrega, em cartório e sob recibo, de envelopes lacrados, a serem abertos pelo juiz, no dia, hora e local designados no edital, lavrando o escrivão o auto respectivo, assinado pelos presentes, e juntando as propostas aos autos da falência.
§ 5º A venda por pregão constitui modalidade híbrida das anteriores, comportando 2 (duas) fases:
I – recebimento de propostas, na forma do § 3º deste artigo;
II – leilão por lances orais, de que participarão somente aqueles que apresentarem propostas não inferiores a 90% (noventa por cento) da maior proposta ofertada, na forma do § 2º deste artigo.
§ 6º A venda por pregão respeitará as seguintes regras:
I – recebidas e abertas as propostas na forma do § 5º deste artigo, o juiz ordenará a notificação dos ofertantes, cujas propostas atendam ao requisito de seu inciso II, para comparecer ao leilão;
II – o valor de abertura do leilão será o da proposta recebida do maior ofertante presente, considerando-se esse valor como lance, ao qual ele fica obrigado;
III – caso não compareça ao leilão o ofertante da maior proposta e não seja dado lance igual ou superior ao valor por ele ofertado, fica obrigado a prestar a diferença verificada, constituindo a respectiva certidão do juízo título executivo para a cobrança dos valores pelo administrador judicial.
§ 7º Em qualquer modalidade de alienação, o Ministério Público será intimado pessoalmente, sob pena de nulidade”.
Esse artigo 142 teve a sua redação modificada pela Lei 14.112/2020, de modo que hoje tem a seguinte redação:
“ Art. 142. A alienação de bens dar-se-á por uma das seguintes modalidades:
I – leilão eletrônico, presencial ou híbrido;
II – (revogado);
III – (revogado);
IV – processo competitivo organizado promovido por agente especializado e de reputação ilibada, cujo procedimento deverá ser detalhado em relatório anexo ao plano de realização do ativo ou ao plano de recuperação judicial, conforme o caso;
V – qualquer outra modalidade, desde que aprovada nos termos desta Lei.
§ 1º (Revogado).
§ 2º (Revogado).
§ 2º-A. A alienação de que trata o caput deste artigo:
I – dar-se-á independentemente de a conjuntura do mercado no momento da venda ser favorável ou desfavorável, dado o caráter forçado da venda;
II – independerá da consolidação do quadro-geral de credores;
III – poderá contar com serviços de terceiros como consultores, corretores e leiloeiros;
IV – deverá ocorrer no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, contado da data da lavratura do auto de arrecadação, no caso de falência;
V – não estará sujeita à aplicação do conceito de preço vil.
§ 3º Ao leilão eletrônico, presencial ou híbrido aplicam-se, no que couber, as regras da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil) .
§ 3º-A. A alienação por leilão eletrônico, presencial ou híbrido dar-se-á:
I – em primeira chamada, no mínimo pelo valor de avaliação do bem;
II – em segunda chamada, dentro de 15 (quinze) dias, contados da primeira chamada, por no mínimo 50% (cinquenta por cento) do valor de avaliação; e
III – em terceira chamada, dentro de 15 (quinze) dias, contados da segunda chamada, por qualquer preço.
§ 3º-B. A alienação prevista nos incisos IV e V do caput deste artigo, conforme disposições específicas desta Lei, observará o seguinte:
I – será aprovada pela assembleia-geral de credores;
II – decorrerá de disposição de plano de recuperação judicial aprovado; ou
III – deverá ser aprovada pelo juiz, considerada a manifestação do administrador judicial e do Comitê de Credores, se existente.
§ 4º (Revogado).
§ 5º (Revogado).
§ 6º (Revogado).
§ 7º Em qualquer modalidade de alienação, o Ministério Público e as Fazendas Públicas serão intimados por meio eletrônico, nos termos da legislação vigente e respeitadas as respectivas prerrogativas funcionais, sob pena de nulidade.
§ 8º Todas as formas de alienação de bens realizadas de acordo com esta Lei serão consideradas, para todos os fins e efeitos, alienações judiciais.”
Concentremos no que prevê o novel parágrafo 8o. do artigo 142, que autoriza sejam adotadas todas as formas de alienação de bens, desde que realizadas de acordo com a Lei. Chamo a atenção do leitor para observar que o juiz, de acordo com mencionado dispositivo de lei, pode autorizar a adoção de qualquer modalidade para alienação dos bens do devedor, desde que “aprovada nos termos desta lei”, ou seja, da própria lei 11.101/2005 (com a nova redação que lhe foi dada pela lei 14.112/2020).
Sucede, contudo, que a única modalidade que essas mesmas leis preveem é o leilão, que é a modalidade em que, seja pela publicidade, seja pela igualdade de condições entre os interessados, aquelas garantias enfeixadas no princípio do devido processo legal podem estar rigorosamente asseguradas, tanto em favor dos interessados, quanto em especial em favor do devedor.
Afinado, contudo, com o espírito do CPC/2015, surgiu uma corrente jurisprudencial que entende que a lei 14.112/2020 autoriza que o juiz adote uma outra modalidade de alienação de bens do devedor, não por leilão, mas por uma modalidade que tem raiz no mundo econômico norte-americano, em que, antes do leilão, os bens são oferecidos a determinados compradores, que podem livremente estabelecer o preço, sem qualquer controle pelo Poder Judiciário. Ou seja, é uma forma de desrespeitar o que a lei prevê e exige quanto à obrigatoriedade que se realize o leilão, e que o Poder Judiciário fiscalize a sua realização.
Poder-se-ia argumentar que se trata de um mecanismo que, nos Estados Unidos, funciona maravilhosamente e que aqui também dará excelentes resultados em termos de efetividade da tutela jurisdicional, tanto quanto deseja o CPC/2015 (que, não podemos esquecer, é a lei geral que se aplica ao processo judicial da recuperação judicial). Tudo estaria bem se a Lei brasileira previsse essa modalidade de alienação dos bens do devedor, o que, contudo, não ocorre.
Entre a efetividade da tutela jurisdicional e o respeito à garantia constitucional que é imposta pelo princípio do devido processo legal, o Estado de Direito não enseja qualquer dúvida ao que deve prevalecer.