HABERMAS mostrou sempre certo desconforto diante do termo “pós”, empregado acerca de uma série cada vez maior de situações. Fala-se, pois, em “pós-modernismo”, “pós-estruturalismo”, e assim por diante, sempre com a intenção de querer dizer que algo, um objeto de estudo, já não é mais o mesmo que era antes, e que alguma coisa sensível nele se modificou. Poder-se-ia dizer então que estamos a vivenciar a era do “pós-ativismo judicial”?

Certamente o que vemos hoje não é mais o que MAURO CAPPELLETTI viu quando escreveu seu opúsculo “Juízes Legisladores?”, quando havia ainda uma espécie de ativismo judicial ingênuo, quando o juiz, identificando na lei, alguma injustiça, modificava a lei para com isso fazer a justiça do caso em concreto. Os juízes que assim agiam eram chamados de “ativistas”, e no Brasil esse fenômeno deu lugar a uma escola que foi chamada de “escola do direito livre”, que teve alguma repercussão em especial na justiça gaúcha, mas  que não avançou como se imaginava pudesse avançar.

Em tendo a sociedade moderna se tornado cada vez mais complexa, aquele ingênuo “ativismo judicial” deu lugar a um outro fenômeno, a rigor sem paralelo com o que os juízes haviam buscado na escola do direito livre, quando queriam era apenas o adaptar a lei (sempre com ela operando, ainda que dissessem que não o estavam fazendo) às circunstâncias do caso em concreto. A questão era, pois, as de limites hermenêuticos, e nada mais.

Quando se fala hoje de um “ativismo judicial”, ou de um “pós-ativismo”, o que temos é coisa muito diferente e mais perigosa, porque não se trata de aumentar o poder hermenêutico do juiz (que, a rigor, é sempre bastante amplo, como observa KELSEN). O “pós-ativismo judicial” nada tem a ver com a hermenêutica, mas com a extensão do poder – do Poder Judiciário.

Qual é a gênese do “pós-ativismo judicial”, e sob que específicas circunstâncias presentes em um determinado país esse fenômeno pode se instalar ou se desenvolver mais acentuadamente? E que tipo de constituição é mais propícia a dar azo a que surja, instale-se e se desenvolva o “pós-ativismo judicial”? São questões complexas sobretudo porque exigem uma perspectiva compósita entre o campo do Direito, da Política, da Filosofia geral e do Direito e da Sociologia, e é por isso é que bastante difícil obtermos uma compreensão algo consistente do que representa esse fenômeno, que vincula o Direito e a Política de maneira muito expressiva.

O que se sabe de antemão é que o “pós-ativismo judicial” é tão diverso do antigo e ingênuo ativismo que, em verdade, não há nada entre um e outro que seja coincidente,  senão que o fato de que há uma autuação do Poder Judiciário para além de seus limites constitucionais, seja quando sobre-excede seu poder hermenêutico (ativismo judicial), seja quando sua autuação institucional transmuda-se de tal modo que acaba por avançar sobre as atribuições dos outros poderes (pós-ativismo judicial).

Importante observar que na primeira “onda” do ativismo judicial, o juiz, a pretexto de interpretar a norma, produzia-a, assumindo o papel de legislador, mas com efeitos que se limitavam ao caso em concreto,  e exatamente por isso o riscos envolvidos eram consideravelmente menores do que estão envolvidos no “pós-ativismo judicial”, em que não se trata de interpretar e aplicar a norma do caso em concreto, senão que está em questão o limite de atuação do Poder Judiciário como um poder instituído em face dos demais poderes instituídos, limites que estão e devem estar rigorosamente traçados na constituição, e sem os quais não há democracia, como não há Estado de Direito, lembrando, na esteira do que ensina CANOTILHO, que o Estado de Direito é um “estado de distância”, porque garante os indivíduos perante o Estado e os outros indivíduos, além de lhes assegurar, positivamente, um irredutível espaço subjetivo de autonomia marcado pela diferença e individualidade. Mas ao tempo em que um Estado de Direito é um “estado de distância”, se consideradas as relações que o Estado mantém com o indivíduo, é um estado de “equidistância” se considerarmos as relações entre os poderes instituídos, e  que os obriga a respeitarem os limites que a constituição fixa. O “pós-ativismo judicial” é mais perigoso porque coloca em risco a observância a esses limites.

Em países, como Alemanha e Portugal, que possuem tribunais constitucionais, há um risco menor de que os limites entre os poderes instituídos possam ser desrespeitados, porque dentre as principais funções que cabe a um tribunal constitucional desempenhar está  precisamente a garantia de que a constituição seja respeitada e efetivamente cumprida, sobretudo quanto aos limites em que cada poder pode agir.

Logo,   países que não contam com um tribunal constitucional estão submetidos a um  risco muito maior de que alguma forma de “pós-ativismo judicial” possa se instalar, porque não há um órgão de sobreposição que permita estabelecer um controle sobre a atuação de cada poder e, nomeadamente, sobre os excessos que podem ocorrer.

A democracia existe e  somente pode existir se há equilíbrio, que lhe é, portanto, um valor jurídico-político-social imanente. Assim, se  de algum modo há quebra desse equilíbrio, porque um poder instituído esteja a se assenhorear do exercício de funções e atribuições que cabe a outro poder, então há uma situação de grave risco, que pode, ao longo do tempo, deteriorar a democracia, atingindo primeiro o Estado de Direito. O risco que vem do “pós-ativismo judicial” está exatamente nesse ponto.

Na origem do “pós-ativismo judicial” está um interessante e paradoxal fenômeno que caracteriza a nossa sociedade moderna, que não existia ao tempo em que se falava ingenuamente de um “ativismo judicial”, em que o juiz, não encontrando na norma a justiça do caso em concreto, tratava de criar a norma, como se legislador pudesse ser. Na sociedade moderna, há cada vez mais Direito, e há mais Direito alargando sua atuação para áreas nas quais antes o Direito não atuava.

Assim, na mesma proporção em que há mais Direito na sociedade moderna, a atuação do Poder Judiciário também aumenta e se amplia, criando uma situação de constante risco de conflito com os poderes instituídos. E se mais Direito traz mais risco, como observa RAFFAELE DE GIORGI (“Direito, Democracia e Risco – Vínculos com o Futuro”), uma atuação mais abrangente do Poder Judiciário também traz risco, mas um risco de outra natureza, que é um risco que é diretamente decorrente da quebra das relações de equidistância que deve manter com os outros poderes instituídos.

Desde MARX sabe-se que o Direito é uma superestrutura, e desde LUHMANN (e de TALCOTT PARSONS mais precisamente) sabe-se que o Poder Judiciário é um sistema social e cujo funcionamento caracteriza-se pela diferenciação funcional, seja em termos de códigos (“código” aqui empregado não no sentido de uma codificação de normas, mas no sentido em que a Semiologia adota como produtor de mensagem), seja em termos de espaços em que um determinado sistema funcional pode operar, ou não deve operar.

Quando essa diferenciação funcional deixa de existir, porque um determinado sistema social dilatou muito os códigos com os quais opera a ponto de não mais se poder saber que códigos estão ali a operar, ou ainda porque a função de uma sistema social transmudou-se em algo que não é mais específico daquele sistema, há uma situação-limite em que a diferenciação funcional não é mais o elemento que deve caracterizar um sistema social e o separar de outros sistemas sociais.

O “pós-ativismo judicial” deve ser compreendido nesse contexto e é por isso que a leitura (ou releitura) das obras de LUHMANN acerca dos sistemas sociais torna-se neste momento obrigatória.

 

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