Consideremos a redação do artigo 1.040 incisos I e II, do CPC/2015, cujo texto é o seguinte:
“Art. 1.040. Publicado o acórdão paradigma:
I – o presidente ou o vice-presidente do tribunal de origem negará seguimento aos recursos especiais ou extraordinários sobrestados na origem, se o acórdão recorrido coincidir com a orientação do tribunal superior;
II – o órgão que proferiu o acórdão recorrido, na origem, reexaminará o processo de competência originária, a remessa necessária ou o recurso anteriormente julgado, se o acórdão recorrido contrariar a orientação do tribunal superior”.
Destaquemos o emprego do verbo “coincidir” no inciso I e do verbo “contrariar” no inciso II desse dispositivo legal. A princípio, seria de se esperar, por uma questão de lógica e para evitar algum problema de interpretação, que o legislador, em tendo se utilizado do verbo “coincidir” no inciso I, tivesse empregado uma forma de antônimo no inciso II, ou seja, com o uso da expressão “não coincidir”. Mas o texto legal fala em “contrariar”. Teria sido um equívoco do legislador, ou há alguma intenção estaria aí presente, a desafiar o intérprete?
Se formos aos bons dicionários, como o Houaiss por exemplo, encontraremos como significados do verbo “coincidir”: ser concordante, combinar, afinar-se, enquanto para o verbo “contrariar” temos os seguintes significados: não atender a (algo); fazer diferente do desejado ou esperado; estar em desacordo com.
Se o inciso II do artigo 1.040 do CPC/2015 tivesse utilizado a expressão “não coincidir”, não haveria nenhuma dificuldade em considerar que o objetivo da norma foi o de dizer que se o acórdão não é concordante com o acórdão paradigma estabelecido pelo tribunal de superposição em termos de resultado, cabe o reexame. Mas o verbo empregado no referido dispositivo legal é “contrariar”, e há uma importante consequência que daí decorre, impondo uma distinção entre as situações possíveis.
A primeira é a de que pode ocorrer de a solução dada no acórdão não contrariar o paradigma, embora não seja coincidente o resultado do julgamento no recurso de apelação, como se dá, por exemplo, na hipótese de o tribunal de justiça ter interpretado a relação jurídico-material sob uma perspectiva diversa daquela que o tribunal de superposição terá realizado no acórdão-paradigma, e é algo comum que esse tipo de situação processual ocorra. Consideremos o seguinte exemplo, que é, aliás, um tema recorrente em nossa jurisprudência e que diz respeito à cobrança de encargos por parte de associação de moradores em loteamento. O STF firmou tese a respeito, declarando a inconstitucionalidade da cobrança desse tipo de encargo quando o proprietário não terá querido associar-se e não o tenha feito. Ou seja, o STF alicerçou o acórdão-paradigma apenas na questão que radica no direito de associação.
É possível, contudo, que, o tribunal de justiça, no julgamento do recurso de apelação examine sob outra perspectiva a mesma relação jurídico-material, não sob o enfoque do direito de associação, mas sim sob a perspectiva da efetiva utilização dos serviços pelo proprietário de unidade em loteamento. Dir-se-ia que o acórdão do tribunal de justiça não coincide com o acórdão-paradigma, mas se poderá dizer que contraria esse paradigma? Não, é a reposta.
Destarte, em tendo utilizado o Legislador do verbo “contrariar”, quis dizer que o reexame do recurso de apelação somente pode ocorrer se esse acórdão tiver feito a análise da relação jurídico-material segundo a mesma perspectiva adotada pelo tribunal de superposição, mas deixando de aplicar o entendimento que esse tribunal de superposição adotou, sendo aí evidente que o acórdão proferido no julgamento de recurso de apelação terá contrariado o acórdão-paradigma. Valendo-se do mencionado exemplo, teríamos que o tribunal de justiça, analisando a questão sob a perspectiva do direito de associação, não acolhe o acórdão-paradigma, e o contraria, portanto, sendo imperioso submeter-se o acórdão a reexame, tal como determina o artigo 1041 do CPC/2015.
Mas se o tribunal de justiça examinou a questão, não sob a perspectiva do direito de associação, mas sob um outro fundamento fático-jurídico, como, por exemplo, se houve ou não uma efetiva utilização dos serviços colocados à disposição do proprietário da unidade em loteamento, então nesse caso o acórdão não está a contrariar, senão que apenas a não coincidir em termos de resultado (provimento ou desprovimento ao recurso), situação diversa daquela primeira.
Poder-se-ia argumentar que o artigo 1.041 fala em “acórdão divergente”, com o que estaria o Legislador a abarcar as duas situações – a de não coincidir e a de contrariar a que se referem os incisos I e II do artigo 1.040. Mas também é necessário considerar a finalidade da norma em questão, que é a de submeter a um novo julgamento, ainda sede de recurso de apelação, o acórdão que tenha contrariado o acórdão-paradigma, ou seja, dele divergido, situação que é diferente daquela em que o acórdão, analisando a questão sob outra perspectiva, terá apenas não coincidido com o resultado do julgamento, mas esteado em um fundamento jurídico diverso daquele que alicerça o acórdão-paradigma, de maneira que nessa situação não se pode dizer, tecnicamente ou mesmo segundo a realidade das coisas, que o acórdão proferido na apelação terá contrariado o acórdão-paradigma. Haverá, sim, uma incoincidência entre os resultados em si, mas não quanto aos fundamentos fático-jurídicos, porque dissociados entre si.
De forma que a conclusão que se impõe é que apenas na hipótese em que o acórdão proferido em recurso de apelação tenha efetivamente divergido do acórdão-paradigma, e não na hipótese em que houve uma mera incoincidência quanto ao resultado do julgamento, é que se deverá aplicar a regra de que artigo 1041 do CPC/2015, havendo nesse caso um novo julgamento do recurso de apelação.