Em 1984, quando o processualista italiano, MAURO CAPPELLETTI, escreveu o conhecido ensaio “Giudici Legislatori?” (“Juízes Legisladores?”), havia uma preocupação com os limites hermenêuticos que se deveriam impor ao juiz no processo. Obviamente que CAPPELLETTI refletia e escrevia sobre o papel que o Poder Judiciário deveria exercer em uma sociedade (de 1984) muito diferente da nossa, e muito menos complexa do que a sociedade com a qual lidamos hoje. Àquela altura, justificava-se uma preocupação com os limites hermenêuticos do juiz no processo, e apenas nele.

Hoje, o foco da preocupação de quem estuda o Poder Judiciário e sua relação na sociedade modificou-se sensivelmente, porque estamos a falar de uma outra sociedade, que como observam ZYGMUNT BAUMAN e REIN RAUD, é caracterizada por ser uma sociedade de incertezas, e é exatamente em função dessas incertezas que os riscos aumentam, o que faz com que os limites impostos ao Direito tornem-se mais expostos, como afirma RAFFAELE DE GIORGI: “(…) em uma sociedade em que os riscos aumentam, o direito torna seus limites manifestos. (…) a centralidade da observação do direito na descrição na sociedade moderna decorre do fato de que, na semântica do direito, coagularam-se exatamente aquelas aquisições que permitiriam à sociedade moderna manifestar-se, tornar visível a sua potencialidade. Indivíduo, pessoa, ação, liberdade, decisão, sujeito, subjetividade, particularidade, universalidade: apenas uma redescrição dessas aquisições como construções, isto é, como artificialidades, permite-nos observar como realmente a modernidade se desagrega. (…)”. (“Direito, Democracia e Risco – vínculos com o futuro”).

Assim, se a preocupação de CAPPELLETTI radicava nos limites que ao juiz deve ser dado como intérprete da lei no processo, hoje o foco dessa preocupação deslocou-se para os limites que se deve impor ao Judiciário como poder em uma sociedade tão complexa como a nossa, não se podendo esquecer que o Direito, e o Direito que aqui deve ser considerado é o Direito positivo interpretado pelos juízes, forma uma superestrutura, e como toda superestrutura opera necessariamente com uma ideologia, e que por trás de toda ideologia há interesses.

Ao tempo em que CAPPELLETTI pensava e refletia sobre os limites hermenêuticos que deveriam ser impostos ao juiz, a atuação do Poder Judiciário limitava-se ao mundo do processo, e o processo por sua vez era concebido para ser apenas um instrumento formal de direitos, e para direitos de natureza privada. Não havia ainda chegado a onda (para usarmos de uma expressão cara a CAPPELLETTI) dos direitos subjetivos que são exercidos contra o Estado, em que o Judiciário revela-se verdadeiramente como um poder, implementando direitos em favor do cidadão e da sociedade, e a controlando (a sociedade) de modo que se deva respeitar o pluralismo de ideias.

Essa “onda” trouxe um sério problema que, conquanto lhe fosse imanente, somente pode ser percebido mais ao adiante, quando não se estava mais no terreno apenas da hermenêutica jurídica, mas já no campo da Política, uma campo que é tão variegado quanto perigoso ao Poder Judiciário, precisamente porque há ideologia e há interesses, muitos dos quais escusos ou não confessáveis.

Esse é o desafio que se impõe ao Judiciário enquanto poder em nossa complexa sociedade, que é o desafio de manter-se, tanto quanto possível, equidistante desses interesses, embora deva interpretar as normas legais, muitas delas produzidas pelos mesmos escusos e inconfessáveis interesses.

Em 1984, quando CAPPELLETTI produziu seu importante ensaio tínhamos uma sociedade ingênua, que deveria fingir não existissem interesses por detrás das normas, e que o juiz não deveria senão que interpretar as normas, evitando assumir o papel do legislador. Hoje, em nossa sociedade complexa, e muito menos ingênua, sabemos com que interesses o Legislador envolve-se quando produz as normas, revelando-se a ideologia aí presente. Mas ainda não temos a ferramentas adequadas a permitir que identifiquemos a ideologia do Judiciário enquanto poder, porque se é fácil controlar os limites de interpretação do juiz, não é nada fácil fazer aparecer a ideologia por detrás da decisão judicial.

(Adverte-se o leitor de que estamos a falar  aqui genericamente do Judiciário como poder, sem nenhuma referência ao Judiciário de qualquer país, nos mesmos moldes tão genéricos, portanto, de que tratou CAPPELLETI em seu ensaio.)

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