O ensino domiciliar, que, em inglês, é chamado de “homeschooling”, foi recentemente aprovado por nossa Câmara dos Deputados e o projeto segue agora ao Senado. Trata-se, em linhas gerais, da discussão quanto ao direito de os pais, eles próprios ou alguém às suas ordens (um professor particular), ministrarem aulas a seus filhos, dirigindo com acentuada autonomia a formação escolar. Dentre aqueles que defendem o projeto, argumenta-se que, em um país cuja democracia é liberal, tanto quanto o deva ser o Estado, prevalece a autonomia dos pais. Aqueles que são contrários ao projeto sustentam que a escola é e será sempre o melhor instrumento, não apenas para que se possa obter um ensino de qualidade, senão que principalmente para que as crianças convivam com as diferenças e se adaptem a elas, criando desde cedo  o hábito da tolerância.

Há, entretanto, um aspecto que tem passado despercebido na discussão desse importante tema. Para compreendê-lo teremos que ir ao filósofo italiano, ANTONIO GRAMSCI (1891-1937).

A formação marxista de GRAMSCI permtiu-lhe descortinar algo de que o marxismo ainda não havia se dado conta: o de que convive com o Estado enquanto aparelho repressivo uma pluralidade de aparelhos ideológicos,  que a distinção entre aparelhos ideológicos públicos e privados era uma distinção criada nos domínios do Direito,  mais precisamente do Direito em sua formação burguesa, e que essa distinção não podia ser aplicada aos aparelhos ideológicos, precisamente porque a atuação desses aparelhos está para além do Direito positivo, visto que esses aparelhos,  representando os interesses das classes dominantes, não são nem público, nem privado. Pouco importa, sublinha GRAMSCI, que esses aparelhos sejam públicos ou privados, porque o que lhes importa é como funcionam em termos de ideologia, e que efeitos projetam sobre o poder do Estado.

Dentre os aparelhos ideológicos do Estado estão as escolas, em relação às quais somente tem sentido perscrutar se são públicas ou privadas no exclusivo campo do Direito positivo, e assim devemos interpretar os artigos 205 e 209 da nossa Constituição de 1988. Mas fora do campo do direito positivo, as escolas não são públicas, nem privadas, mas sim instituições que se caracterizam por serem aparelhos ideológicos, em que sobreleva considerar a função que exercem, o que justifica que um país realmente democrático tenha o especial interesse em que existam escolas com um leque bastante amplo em termos de ideologia, o que, sem dúvida, alimenta uma sociedade plural, e o que justifica que o Estado e a sociedade exerçam certo controle sobre as escolas, impedindo de funcionar aquelas que defendam uma ideologia totalmente dissociada da ideia de tolerância, principal valor em um democracia.

Chegamos assim ao que está por trás do projeto do “homeschooling”, que, aprovado, fará surgir um novo e incontrolável aparelho ideológico, que demonstrará como GRAMSCI estava e estará sempre certo em sublinhar que os aparelhos ideológicos não são públicos ou privados, senão que se os devem considerar como efetivamente são: como instrumentos de ideologia.

Portanto, se aos pais for reconhecido o direito à autonomia na formação escolar de seus filhos, faremos surgir inúmeros e incontáveis aparelhos ideológicos sem qualquer controle pelo Estado, e o controle a que me refiro aqui não é o controle por meio de leis,  porque todos os aparelhos ideológicos estão, por natureza, para além do Direito positivo.

Para bem compreender os riscos que envolvem o “homeschooling”, basta considerar o que enfatizou GRAMSCI quando compara o aparelho repressivo do Estado, baseado na força, com os aparelhos ideológicos, porque estes funcionam apenas pela ideologia, cujo poder pode ser tornar mais poderoso que o do próprio Estado, substituindo-o.

 

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