Há dentre os críticos quem afirme que se deve a ISIDORE DUCASSE, mais conhecido como “CONDE DE LAUTRÉAMONT” a compreensão do texto literário como uma obra aberta, e que MALLARMÉ simplesmente deu desenvolvimento à ideia de LAUTRÉAMONT. Por “obra aberta”, entende-se a liberdade de extrair  de um texto sentidos que, a rigor, nele não estão, ou não estão todos autorizados. UMBERTO ECO, em seu indispensável livro “Obra Aberta”, escreveu sobre o tema.

Como todo texto literário, ou seja, como todo texto, o texto jurídico está sujeito a interpretações tão várias, quanto vários são os sentidos que por dessas interpretações podem ser alcançadas. A propósito, KELSEN reservou o último capítulo de sua “Teoria Pura do Direito” para tratar da interpretação, em que cuidou enfatizar que, quase sempre, o texto de uma norma legal comporta mais de um sentido, e esses sentidos compõem uma espécie de moldura, cabendo ao juiz escolher aquele sentido que lhe mais apraz. KELSEN apoiava-se certamente no que NIETZSCHE observara: “Não há fatos, somente interpretações”.

KELSEN também observou que não se pode excluir a possibilidade de que um sentido que não está na norma acabe integrando a moldura, e se a coisa julgada material chega, esse sentido “impróprio” acaba se tornando o sentido oficial.

Essa introdução é necessária para falarmos sobre o tema que nos interessa, que é a distinção que se deve fazer, no campo do processo civil, entre “questão” e “demanda”, com importante aplicação prática no campo do processo de inventário, porque o artigo 612 do CPC/2015, tal como fazia o artigo 984 do CPC/1973, estabelece que “O juiz decidirá todas as questões de direito desde que os fatos relevantes estejam provados por documento, só remetendo para as vias ordinárias as questões que dependerem de outras provas”.

“Questão” é uma afirmação de fato ou de direito que está sob controvérsia no processo, tornando-se, assim, uma questão. Uma afirmação de fato ou de direito que é feita na peça inicial é um “ponto”, e quando esse “ponto” está sob controvérsia, transforma-se em “questão”. Observa LIEBMAN, que nem sempre todas as questões surgidas no processo tornam-se objeto de verdadeira decisão, como pode acontecer na hipótese em que o juiz precise conhecer de questões referentes à existência ou inexistência de um estado ou de uma relação jurídica que, sem constitui objeto do processo, seja seu antecedente lógico. São as chamadas “questões prejudiciais”, diz LIEBMAN em seu “Manual de Direito Processual Civil”.

“Demanda” é o pedido formulado na ação ou na reconvenção.  DINAMARCO, ao traduzir o “Manual de Direito Processual” de LIEBMAN, cuidou anotar que a palavra “demanda” não era, naquela altura, de uso corrente entre os processualistas, e a situação atual não se modificou a respeito. É mais comum usar-se de pedido em lugar de demanda. De toda a forma, “demanda” é a providência que se busca alcançar pelo provimento jurisdicional, o que significa dizer que a demanda abrange tanto o bem da vida objeto do processo, quanto o tipo de provimento jurisdicional que se quer (um provimento condenatório, por exemplo). Demanda é, portanto, pedido ou pretensão.

Tem-se aí, em poucas linhas, o necessário para compreender a distinção entre “questão” e “demanda”, distinção que se torna importante no caso específico do processo de inventário, quando se trata de interpretar o artigo 612 do CPC/2015, que se refere à questão, e não à demanda, o que impõe observar que esse dispositivo legal concede ao juiz o poder de analisar, no processo de inventário, questões de direito, desde que os fatos a essas questões relacionadas estejam provados por documentos.

Note-se, pois, que o artigo 612 do CPC/2015 não fala em demanda, mas em questão. Com efeito, se no processo de inventário surge uma demanda, além daquela que naturalmente forma esse tipo de processo, como, por exemplo, na hipótese em que um terceiro alega existir uma relação de convivência com o falecido, pleiteando que se declare a existência de relação jurídica que lhe conferirá a condição de herdeiro, nesse caso não há uma questão, mas sim uma demanda, uma pretensão, surgindo, pois, o fenômeno da cumulação de demandas, ou seja, de mais de um pedido feito no mesmo processo, o que exige a análise quanto à admissibilidade desse tipo de cumulação de demandas, tal como prevê o artigo 327 do CPC/2015.

Alguém poderia indagar se não constituiria uma questão prejudicial decidir se o terceiro manteve ou não uma relação de convivência com o falecido. Sim, mas não sendo parte no processo de inventário, o terceiro não pode alegar a existência de uma questão prejudicial isoladamente, sem que se transforme antes em parte, formulando uma demanda.

Mas para que falamos no começo deste texto de “obra aberta”, perguntará o percuciente leitor? Para podermos dizer que se uma decisão judicial, confundindo “questão” com “demanda”, trata a primeira como se fosse a segunda, e a coisa julgada opera-se, então “questão” terá se transformado, no caso em concreto, uma “demanda”, e a moldura estará assim fixada.

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