MICHEL FOUCAULT, em sua conhecida obra “Vigiar e Punir”, publicada em 1975, cuidou analisar, com mão de mestre, como operam os “micropoderes” como ramificações do Estado, ao observar que se o poder do Estado, no aspecto jurídico-legal, é exercido por meio de leis formais, esses  “micropoderes” exercem seu poder por meio de “regulamentos”, e não há entre “leis” e “regulamentos” uma diferença apenas de escala como pode parecer. Enquanto a lei formal cria e define um espaço de liberdade, fixando-lhe limites, estatuindo, pois, o que cada um pode ou não fazer dentro desses limites,  o que, aliás, é da essência da lei formal como mecanismo de limitação ao poder e de garantia da liberdade, no caso dos “regulamentos” eles operam exatamente em um espaço que é deixado vazio pela lei formal. Como observa FRANÇOIS EWALD, aluno e autorizado comentador de FOUCAULT:

O regulamento (…) toma  a seu cargo os homens nesse espaço vazio. (…). O regulamento interessa-se pelo que há de mais sútil na conduta ou no comportamento. Ele distingue, diferencia, individualiza, hierarquiza. Impõe gestos, atitudes, hábitos. Medes as distâncias que sanciona. Impõe o constrangimento contínuo e minucioso destas prescrições ao longo da existência. Normaliza e moraliza ao mesmo tempo. (…) O regulamento, e a sanção que o reduplica, é um dos operadores do investimento do poder sobre os homens que fabrica, forma e torna dóceis, de maneira que os indivíduos assim formados e educados, reproduzirão, na sua vida, na sua conduta, mas talvez nas suas ideias, nas suas vontade, a própria forma do poder que se exerce sobre eles. (…)”. (FOUCAULT – A Norma e o Direito, p. 41).

Diversamente do que sucede com os países em geral, especialmente os da Europa ocidental, que impuseram, por lei formal, a obrigatoriedade da vacina para a “Covid”, estabelecendo sanção pecuniária para a hipótese de não cumprimento da norma legal, no Brasil, conquanto não haja, até agora, uma lei formal editada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente da República, a vacina tornou-se obrigatória por meio de “regulamentos”, editados tanto por alguns órgãos públicos, quanto por pessoas jurídicas de direito privado. Assim é que, no âmbito de alguns órgãos públicos, “regulamentos”, foram editados para impor como condição de acesso às suas repartições o comprovante vacinal, enquanto na iniciativa privada ocorre o mesmo, como, por exemplo, em empresas  que têm demitido empregados que não comprovem terem se submetido à vacina obrigatória, e o fazem essas empresas alicerçados em seus próprios “regulamentos”, porquanto  não há lei formal no Brasil criando essa obrigatoriedade – uma lei formal que tenha sido editada sob o ritual e o rigor que a Constituição exige. Até para ingresso em uma partida de futebol, têm as federações (que são entidades particulares) estabelecido “regulamentos” para tornar a vacina obrigatória.

Esses órgãos públicos e empresas de direito privado operam assim como “micropodores”, nos exatos moldes em que o genial FOUCAULT descreve-os, quando caracteriza a sua atuação por meio de “regulamentos”, que ocupam um vazio deixado pela lei. Tal como ocorre no caso da obrigatoriedade da vacina para a “Covid”, espaço de vazio legislativo que foi indevidamente ocupado pelos regulamentos.

Mas há um preço a pagar aí: aquele que FOUCAULT destaca quando afirma que a lei formal, e só ela, constitui um espaço de liberdade  um Estado de Direito, de modo que, no interior da lei é que impõe uma partilha objetiva entre o que é permitido e o que é proibido pelo Estado. No caso dos “regulamentos”, esse espaço de liberdade está sempre esmaecido, e isso ocorre de maneira proposital, porque é da essência dos “micropoderes” quererem  ampliar seu poder, normalizando e moralizando certas condutas, e o fazem livremente, sem as pressões que os deputados e senadores enfrentam no processo legislativo, pressões que vêm diretamente da sociedade. Os “micropoderes” empregam os “regulamentos” precisamente como uma forma de fugir a essa pressão, impondo suas preferências.

A Ciência Médica está a demonstrar que a vacina para a “Covid” apresenta eficácia e isso basta para que o Legislador brasileiro tenha razões para torná-la obrigatória. Mas entre querer torná-la obrigatória e efetivamente a tornar obrigatória há um significativo espaço, que é de ser ocupado apenas pela lei formal, e não pelos “regulamentos”, muito menos regulamentos  deixados à vontade aos “micropoderes”.

No caso da vacina para a “Covid”, alguém poderia pretextar que os “regulamentos” acabaram por, legitimamente, ocupar um espaço vazio deixado pelo Congresso Nacional, e que a saúde pública justifica que, excepcionalmente, a obrigatoriedade da vacina possa ter sido estabelecida por meio de “regulamentos”. Até aí vamos bem. O problema começa com o perceber a volúpia dos “micropoderes” em ocupar espaços vazios, e nem sempre nesses espaços vazios teremos um interesse público. Como observa FOUCAULT, é da essência dos “regulamentos” o querer moralizar. O Estado de Direito no Brasil corre o sério risco de ter seu poder legislativo “terceirizado” pelos “micropoderes”.

 

 

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