Os processualistas de hoje não veem seu objeto de estudo – o processo civil – tão dissociado da realidade como antes o viam, ao tempo em que sustentavam existir uma distinção tão acentuada entre o direito material o direito processual civil que não se podia compreender como esses ramos do Direito podiam ter alguma relação, tão distantes estavam um do outro. Hoje, a ideia de um processo civil de resultados, em que a compreensão do que representa a figura do processo justo, obriga o processualista a ver a realidade (mas a realidade jurídica apenas). Não há negar, portanto, que a ciência do processo civil evoluiu, mas não ainda a ponto de considerar e aplicar as importantes contribuições que a Filosofia geral pode trazer sobre as relações jurídico-processuais, para que se as compreendam em sua real essência.
O processualista, com efeito, continua isolado em sua torre de marfim quando se trata de analisar o conteúdo de normas do processo civil, como se elas não dissessem respeito senão que apenas ao processo civil, e quando muito à realidade, mas à realidade do direito material, e não à realidade enquanto ela própria.
Tomemos, por exemplo, dois dispositivos do CPC/2015: os dos artigos 5o. e 6o., cujo conteúdo é o seguinte: “Art. 5º Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé”. “Art. 6º Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”. Se formos aos processualistas, encontraremos comentários que acerca dessas regras dizem, no caso do artigo 5o., que se trata de uma regra que impõe a cláusula geral da boa-fé, obrigando as partes a que, no processo civil, observem-na, sob pena de incidirem em litigância de má-fé ou abuso do direito de demandar, e que a boa-fé é uma expressão do princípio da cooperação, o que nos remete ao artigo 6o, em que a lealdade processual surge então como um valor jurídico que caracteriza o dever de probidade, e este ao dever de cooperação, em uma relação circular de conceitos, mas todos pensados apenas no processo civil em si.
Mas se o processualista se desse ao trabalho de tentar compreender o que são, ontologicamente, esses deveres de boa-fé, de lealdade e de cooperação, chegaria certamente ao campo da Filosofia em geral, e mais propriamente à “Ética do Discurso”, que é um conceito introduzido por filósofos alemães e desenvolvido sobretudo por KARL-OTTO APEL e JÜNGER HABERMAS, aplicado a um tipo específico de discurso – o discurso argumentativo – exatamente o discurso que forma a essência do processo civil, e de resto do processo penal, do processo trabalhista, do processo administrativo.
No discurso argumentativo, observam APEL e HABERMAS, está sempre presente um “a priori da fundamentação racional do princípio da ética”. Como diz APEL, na “Ética do Discurso”, o princípio transcendental kantiano do “eu penso” dá lugar ao “eu argumento”, e não há lugar em que esse “eu argumento” tem maior aplicação que no processo civil. O autor argumenta na peça inicial, como o réu o faz na contestação, o juiz na sentença e o tribunal em seu acórdão. Todos estão a argumentar o tempo inteiro, e o fazem sob o pressuposto de uma fundamentação racional.
Os processualistas não sabem, mas o que os artigos 5o. e 6o. do CPC/2015 trazem como importante conteúdo não está no processo civil, mas na argumentação acerca da realidade e de uma ética de responsabilidade que deve permear esse discurso. Ou seja, o CPC/2015 adotou a “Ética do Discurso”, nos exatos moldes em que APEL e HABERMAS a estabelecem no campo da Filosofia.
Donde se pode concluir que por maior esforço que o legislador do CPC/2015 tenha feito na tentativa de expulsar a ética do processo civil, ela permanece ali presente, porque, em sendo da essência do processo civil o existir um discurso argumentativo, há que se aplicar a “Ética do Discurso”, em que se deve considerar uma responsabilidade ética repartida solidariamente entre todos os sujeitos que atuam no processo civil, para que ocorra a fundamentação concreta das normas de justiça.