Na década de 1950, surgiu na literatura, especialmente com o escritor francês, ALAIN ROBBE-GRILLET o que a crítica denomina de “nouveau roman”, que se caracterizava por constituir um novo tipo de narrativa, em face da qual o leitor não tem a sua atenção deslocada para o romance, mas para o próprio autor. Segundo JOSUÉ MONTELLO, nesse tipo de narrativa (que ele, aliás, condenava), o autor procura exibir as suas
virtualidades ostensivas na arte com que faz do romance um jogo de armar – escondendo-o do leitor”. 

O “nouveau roman” interessou de perto o filósofo ROLAND BARTHES, que buscou identificar e perscrutar o que seria o “grau zero da escrita”, em que existe um escritor sem Literatura, para compreender o que surge quando se tem uma realidade formal que é independente da língua e do estilo. Em seu famoso livro “O Grau Zero da Escrita” trata do tema, no bojo do qual cuidou de modo especial das “Escritas Políticas”, que devemos utilizar como material para compreender o que envolve a escrita do juiz, revelada na sentença, em que a intenção é chamar a intenção do leitor (do jurisdicionado em especial) para o  Estado-Juiz, cuja voz é na sentença reproduzida pelo juiz, como se este não tivesse ali uma presença real, com o que muitas vezes se busca esconder a verdadeira ideologia em que está ancorada a decisão judicial.

Observa BARTHES com sua habitual acuidade: “Eis por que o poder ou a sombra do poder acaba por instituir uma escrita axiológica, em que o trajeto que separa comumente o fato do valor fica suprimido no espaço mesmo da palavra, dado ao mesmo tempo como descrição e julgamento”. (O Grau Zero da Escrita). É exatamente o que sucede com a linguagem produzida em uma sentença judicial, uma linguagem que se quer neutra como se não houvessem valores que pudessem estar escondidos atrás da palavra.  O Estado, falando pela linguagem do juiz na sentença, não possui (ou não dever possuir) ideologia, e por isso, quando se lê uma sentença não parece que exista um autor (um juiz de carne e osso) que a escreveu com sua ideologia e seus valores.

E esse fenômeno surge mais nítido quando se trata de um tribunal, cujas decisões são (ou devem ser) tomadas em colegiado, em uma linguagem tão neutra que não se possa saber quem a escreveu.  Há no acórdão nomes dos juízes que participaram do julgamento, mas como o julgamento é feito em colegiado, desaparecem o juiz-relator e os demais juízes, para em seu lugar surgir apenas o Estado como o autor da linguagem e da decisão.  É como se dissociasse por completo a figura humana do juiz da linguagem que produziu na sentença – e o juiz por isso fica com a sua consciência tranquila.

Em certo sentido, pode-se dizer que a sentença judicial é o primeiro modelo de uma escrita sem autor, e que a Literatura francesa apenas importou do processo civil essa técnica de narrativa, em que o autor é conduzido a esquecer que existe um ser humano – o juiz – que pensa, que possui ideologias, que tem certos valores, revelada na escrita.

E o legislador deve fazer o possível que exista um “grau zero” na sentença, tanto assim que recheia os códigos de processo com expressões cuja finalidade é tornar-se uma linguagem comum, como é o caso de expressões que aparecem em todas as decisões/sentenças que concedem uma tutela de urgência: “periculum in mora” e “fumus boni iuris”. Basta que o juiz as empregue para conseguir que a sua linguagem alcance o “grau zero”. O mesmo papel de resto é executado pelas súmulas vinculantes e pelas teses jurídicas tornadas obrigatórias.

LUHMANN, em sua “Sociologia do Direito”, chamou a atenção para a dificuldade de se encontrar uma pesquisa sociológica que pudesse analisar as sentenças judiciais em seu conteúdo. Pesquisas sociológicas podiam analisar o papel do juiz enquanto operador do Direito, mas não o conteúdo da sentença. LUHMANN atribuía o fato ao desconhecimento do sociólogo quanto aos códigos, signos e significados que o Direito contém. Talvez que a verdadeira razão para que a Sociologia não tenha ainda hoje conseguido produzir pesquisas sobre a sentença judicial não está nos conceitos jurídicos, senão que no “grau zero da sentença”. Os sociólogos não devem se tornar juristas, mas semiólogos, se querem compreender o que a escrita judicial não revela.

 

 

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