Trata-se de um fenômeno comum no direito brasileiro: com o passar do tempo, códigos e leis são modificados a ponto de transmudarem a sua essência. É o que está a suceder agora com o Código de Defesa do Consumidor, no momento em que se completam 31 anos de sua entrada em vigor.

Engendrado na década de 1990 como um conjunto de princípios e regras que, reunidos em um código, confeririam uma eficiente e eficaz proteção jurídica às relações jurídico-materiais-processuais nas quais e em face das quais se caracterizasse a presença de uma relação de consumo, com a adoção de importantes técnicas de natureza processual (com destaque para a técnica da inversão do ônus da prova), o Código de Defesa do Consumidor tornou-se uma referência mundial, como comprova o interesse científico despertado por especialistas estrangeiros. Redigido de modo objetivo e simples, esse Código não enfrentou ao longo do tempo grandes discussões quanto à sua aplicação pela jurisprudência brasileira, que viu nele um código de implementação prática bastante adequado, reunindo em um só corpo normas (princípios e regras) de natureza da relação jurídico material e processual.

Mas, infelizmente,  é da tradição do nosso Poder Legislativo introduzir pequenas modificações que, acumuladas ao longo do tempo, mudam a essência da lei. São mudanças a conta-gotas, ou que parecem nada mudar, quando tudo mudam.

É o que vivencia agora o Código de Defesa do Consumidor, cujas disposições foram alteradas pela novel lei federal 14.181/2021, lei a que seu deu o pomposo nome de “Lei do Superendividamento”, em cujo intróito está dito a que se destina: “para aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento”.

Desconfie o leitor do verbo “aperfeiçoar”, quando utilizado pelo legislador. Quase sempre não se trata de aperfeiçoar, mas de modificar. Exatamente como ocorre no caso da lei 14.181.

Essa lei não quer, nunca quis e jamais quererá aperfeiçoar qualquer coisa favorável aos interesses do consumidor ou à sua proteção jurídica. Tanto quanto ocorreu com o Código de Processo Civil de 2015, em que os interesses econômico prevaleceram sobre quaisquer outros interesses, as modificações operadas (o verbo “operar” é aqui bastante propositado) têm o mesmo fim: proteger interesses econômicos, preocupados com os consumidores que devem muito e que não conseguem pagar. Então, é indispensável “fomentar ações direcionadas à educação financeira”, e não apenas financeira (o legislador brasileiro é ambicioso em larga medida), mas também a educação ambiental. Sim, o Código de Defesa do Consumidor agora trata também de matéria ambiental, e mais do que isso, da educação ambiental, conquanto não se possa dizer o que se deve entender por “educação ambiental” em termos de consumo.

E o legislador, preocupado significativamente com o consumidor, agora introduz no texto do Código de Defesa do Consumidor, regra que quer prevenir o endividamento, e o faz para impedir a “exclusão social do consumidor”. Alvissaras notícias, pensará o consumidor. Ledo engano, contudo, porque o legislador não está realmente preocupado em proteger o consumidor, senão aquele que lhe emprestou dinheiro ou lhe vendeu algo, e não recebeu, ou seja, o banco, a instituição financeira, as grandes empresas, o empresariado. Ou seja, trata-se de inovações legislativas que modificam a essência do Código, que, a rigor não deve mais ser chamado de “Código de Defesa do Consumidor”, mas sim de “Código de Defesa do Credor”.

Constate o leitor, ele próprio, a dicção legal empregada na lei 14.181: “crédito renponsável”; “educação financeira”, “repactuação da dívida”, mas esta nos “termos da regulamentação”, e será essa mesma regulamentação posterior que definirá o que significa ou deva significar a “preservação do mínimo existencial” do consumidor, quando estiver a dever.

Todo um capítulo foi introduzido no Código de Defesa do “Credor”, digo do Consumidor para tratar da “Prevenção e do Tratamento  do Superendividamento” (a partir do artigo 54-A), com regras que, à partida, parecem proteger o consumidor, mas que em realidade o seguram e o vinculam aos interesses dos credores. São normas que, por exemplo, querem proteger o direito de informação do consumidor, quando em uma situação de superendividamento, não são o mais importante tema a tratar.

Estimula-se, é certo, a conciliação (artigo 104-A), mas o conteúdo dessa norma legal não consegue esconder seu signo (a proteção aos interesses financeiros dos grandes grupos econômicos). Seu significado é claro quanto a isso, embora existam juristas que juram com toda a sua fé e crença que se cuidam de modificações em proteção ao consumidor. Mas como dizia, com sabedoria prática, o ditador romano,  JÚLIO CÉSAR, “os homens creem no que querem”. 

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