Quando o jurista alemão, CLAUS-WILHELM CANARIS, em um simpósio de professores de Direito Civil, realizado na década de 1980 na Alemanha, proferiu seu discurso sobre o tema “Direitos Fundamentais e direito privado”, não era possível naquele momento ainda inicial dimensionar que extensão e profundidade essa temática alcançaria. Chegamos agora a uma fase em que isso é possível, especialmente no Brasil.
Com efeito, a norma constitucional que garante o direito fundamental à saúde (CF/1988, artigo 196) passou por uma fase hermenêutica em que se buscou extrair o conteúdo e o alcance do que representava ou deveria representar o “direito à saúde” no campo do direito público, de modo que se definisse se o Estado podia ser juridicamente obrigado a implementar na prática o direito à saúde em favor do particular, e, e em existindo esse direito, no que ele consistia precisamente. Note-se que, nessa fase inicial, a controvérsia jurídica instala-se toda no campo do direito público.
Mas há uma via paralela – a do direito privado -, e que em dado momento cruza com a linha do direito público, formando aí uma interseção entre a obrigação do Estado e a obrigação das operadoras do plano de saúde, empresas que, no Brasil, assumiriam e assumem cada vez mais uma destacada importância na área da saúde. Hoje, no Brasil, são 750 operadoras de plano de saúde. O cruzamento entre o direito público e o direito privado radica exatamente no definir qual é a responsabilidade do Estado e das operadoras privadas de plano de saúde, porque o limite destas interfere e interferirá diretamente no limite da responsabilidade do Estado.
Pois que o cruzamento entre o direito público e direito privado chega agora a seu ápice, porque se está a discutir em nossa jurisprudência se as operadoras de plano de saúde podem ou não ser juridicamente obrigadas a fornecerem a seus clientes apenas aquilo que é fixado pela agência reguladora (ANS – Agência Nacional de de Saúde) em termos de procedimentos médicos e medicamentos, ou se está obrigada a fornecer tudo o que for indispensável à mantença da saúde do beneficiário do plano de saúde.
No centro desse debate, está o artigo 196 da Constituição que foi pensando apenas em termos de sua aplicação no direito público. Lembremos que a nossa Constituição de 1988 e que naquela época não se pensava no Brasil na temática que CANARIS na Alemanha propugnava no sentido de que as normas de direito fundamental projetam efeitos também sobre as relações jurídicas privadas.
Se prevalecer o entendimento de que as operadoras de plano de saúde devem fornecer apenas aquilo previsto pela agência reguladora, ou seja, se se entender que a norma do artigo 196 da CF/1988 não produz efeitos significativos no campo das relações do direito privado, então nessa hipótese o Estado terá que assumir uma obrigação ainda maior do que lhe já é imposta, porque terá que fornecer ao beneficiário de um plano de saúde o que não lhe tiver sido fornecido pela operadora do plano de saúde. Suponha-se, a título de exemplo, que a operadora do plano de saúde não possa ser obrigada a fornecer um medicamento que não integra o rol fixado pela ANS; o beneficiário do plano irá buscar do Estado esse mesmo medicamento. E o mesmo valerá também para procedimentos médicos em geral, onerando os cofres públicos de uma área já muito combalida que é a área da saúde pública, cujo orçamento, especialmente depois da pandemia, está a minguar em face de tantas e variadas necessidades.
O artigo 196 da CF/1988, importante observar, foi pensado para garantir aos efetivamente necessitados o direito à saúde pública. Assim, aquele que não pode pagar o tratamento médico de que necessita, ou comprar o remédio que lhe foi prescrito, busca do Estado a implementação desse direito. O orçamento público deve prever recursos financeiros que permitam a implementação prática desse direito. Destarte, se o Estado tiver que fornecer aos pacientes que possuem plano de saúde o que as operadoras de plano de saúde não estão obrigadas a lhes fornecer, não haverá orçamento público que possa fazer face ao montante de tais gastos.
Andando o tempo, demonstrou a realidade como CANARIS estava certo em enfatizar a importância dos direitos fundamentais no campo das relações jurídicas privadas.