Diversos órgãos públicos editaram lei ou decreto (ou portaria) tornando obrigatória a seus servidores a vacina contra a “Covid”, impondo como medida restritiva a vedação a que o servidor que se recusa a tomar a vacina retorne ao trabalho presencial. Esse tipo de medida restritiva guarda relação de proporcionalidade com a finalidade de proteção à saúde pública, e atende ao que o STF decidiu no ano passado, quando enfatizou que se há estabelecer uma distinção jurídica entre “vacina obrigatória” e “vacina forçada”, fixando o entendimento de que a vacina pode ser imposta como obrigatória, mas sem que o Estado possa compelir as pessoas a serem vacinadas, surgindo como consequência dessa distinção de regime que, em havendo recusa à vacina, o Estado pode impor medidas restritivas. É assim que a matéria vem sendo analisada de há muito tempo em tribunais constitucionais da Europa Ocidental.

Mas quando o Estado impõe a vacina como obrigatória, e quando institui uma determinada medida restritiva como consequência para aquele que se recusa a tomar a vacina, surgem situações jurídicas que acarretam deveres jurídicos ao próprio Estado em contrapartida ao que exige.  Consideremos, por exemplo, um servidor público que está obrigado, por lei, decreto ou portaria, a vacinar-se, sem o que não pode retornar ao trabalho presencial, e que, vacinado, retorna ao trabalho presencial e tem entre as funções de seu cargo o atendimento ao público, situação que, evidentemente, cria um acentuado risco à sua saúde, e mesmo à saúde pública, dado que o retorno ao trabalho presencial faz aumentar consideravelmente o número de pessoas que circulam em uma repartição pública. Esse servidor público, obrigado pelo Estado a vacinar-se, e obrigado a retornar ao trabalho presencial, passa a ter o direito subjetivo de obrigar o Estado a exigir que o público que possa ingressar na repartição pública também esteja vacinado, ou então que ao menos o Estado exija um teste negativo para “Covid”. Em diversos lugares privados, aliás, exige-se esse teste como requisito para a entrada de público, e alguns municípios, como o Rio de Janeiro, têm exigido o comprovante de vacina para acesso a lugares públicos.

Desde o que escreveu NORBERTO BOBBIO em sua famosa “Teoria do Ordenamento Jurídico”, sabe-se com clareza que as normas legais relacionam-se entre si e que essas relações produzem consequências jurídicas, o que significa dizer que o conteúdo das relações jurídicas é mais amplo do que o do direito subjetivo, pois como observa CHIOVENDA, “o conceito de relação jurídico é mais amplo do que o de direito subjetivo, não tanto porque exprima, além da posição daquele que goza de um direito, aquela de quem lhe está submetido (porque, em realidade, essa duplicidade de posições se contém já na própria ideia de direito subjetivo), quanto porque normalmente a relação jurídica não se exaure num único direito subjetivo de uma parte e não correspondente sujeição de outra parte: normalmente, a relação jurídica é complexa, ou seja, compreende mis de um direito subjetivo de uma parte em referência à outra, e frequentemente uma pluralidade de direitos subjetivos recíprocos entre as partes (…)”. (Instituições de Direito Processual Civil, v. I).

Destarte, quando o Estado impõe uma medida restritiva a seu servidor público, faz surgir aí uma relação jurídica que é complexa, porquanto essa mesma relação jurídica faz criar um direito subjetivo em favor do servidor, que, no caso da vacina obrigatória, faz surgir o direito subjetivo de ele, servidor público,  exigir do Estado adote medidas restritivas correspondentes e que tenham a mesma finalidade daquela que fundamenta a norma legal que impõe como obrigatória a vacina, ou seja, o valor jurídico de proteção à saúde pública, que é o valor também presente no direito subjetivo do servidor público em face do Estado.

De modo que o servidor público possui o direito subjetivo de exigir da Administração Pública o cumprimento de tais medidas, que, tanto quanto sucede com a vacina, têm por finalidade a proteção à saúde pública. Pode exigir, portanto, que o Estado imponha, como medida restritiva ao público que queira ingressar no ambiente de uma repartição pública, a comprovação da vacina ou então que se submeta ao teste para detecção do vírus da “Covid”. Se a finalidade da medida restritiva que é aplicada contra o servidor público é a proteção à saúde pública, essa mesma proteção está presente na obrigação que é imposta ao Estado de propiciar ao servidor público um ambiente de trabalho tão seguro quanto possível.

E se o Estado não respeita o direito subjetivo de seu servidor público, a este surge um novo direito subjetivo: o de não poder ser obrigado ao trabalho presencial.

 

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