Nos últimos dias, especulou-se quanto à possibilidade de que o Brasil repetiria 1964, com a deflagração de um golpe militar, e até uma data foi escolhida para que isso viesse a ocorrer: o dia 7 de setembro. Ao final, todos vimos que tudo não passava de uma mera especulação.

O episódio, contudo, é apropriado para que possamos estabelecer algumas importantes coincidências  entre o ambiente político-econômico que tínhamos em 1964 durante o governo João Goulart (iniciado em 1961), e o que temos hoje, para então podermos fixar uma conclusão.

Em 1964, nossa economia era bastante frágil, com uma inflação em níveis estratosféricos, e nossos indicadores macroeconômicos demonstravam que uma reforma econômica era indispensável, sem a qual não havia como regular o balanço de pagamentos. O governo JANGO, como é natural em um cenário econômico degradado, enfrentava um aumento das mobilizações sociais, surgindo ali um fenômeno até então inédito no Brasil, quando  militares de baixa patente (soldados, cabos, sargentos) também assumem uma posição política,  e foi exatamente nesse campo que JANGO encontrou uma forma de aumentar seu capital político.

Um episódio tornou-se emblemático, e  curiosamente também envolvia o STF, tanto quanto ocorre em nossa realidade atual. Em 12 de setembro de 1963, deflagra-se uma rebelião liberada por sargentos da Aeronáutica e da Marinha, inconformados diante de uma decisão do STF de não reconhecer a elegibilidade de sargentos para cargos no Poder Legislativo, diante de uma vedação expressa na Constituição de 1946. Esse movimento de insurgência militar não teve em si grande repercussão, mas JANGO demonstrava incorporar parte dos pleitos dos militares de baixa patente, e isso bastou para acender uma luz de alerta dentro das Forças Armadas, com efeitos que se projetaram sobre o poder econômico (a elite financeira). Surgia ali uma preocupação com a possibilidade de JANGO caminhar para um golpe de Estado, apoiado pelos militares de baixa patente, o que era interpretado como um alinhamento de JANGO a movimentos da esquerda. Assim, para evitar esse golpe, a alta cúpula das Forças Armadas e o poder econômico resolveram dar antes o golpe, instaurando um governo militar em 31 de março de 1964, que subsistiu  até 1985.

Comparemos, pois, o que ocorreu em 1964 com o que sucede em nossa realidade presente, e constataremos algumas coincidências. A primeira é a de que o presidente BOLSONARO mantém uma relação bastante próxima com os militares de baixa patente, e também com os policiais militares, embora com estes a relação estenda-se aos oficiais. Outra coincidência diz respeito à atuação do STF. Se em 1964 uma decisão do STF fora a causa de uma revolta entre os militares, em 2021 o governo federal também coloca sob questão decisões desse mesmo tribunal. Movimentos populares, como uma recente manifestação dos caminhoneiros, embora abortada logo em seu início, contava com certo apoio no governo federal, e aí nesse aspecto outra coincidência, porque JANGO também buscava apoio nos movimentos populares como forma de aumentar seu capital político.

Mas o que há de diferente entre 1964 e 2021? A economia, ela própria. Com efeito, a nossa sociedade tornou-se altamente complexa, e uma boa parcela dessa complexidade é imposta pelo mundo econômico, cujas relações perpassam variados interesses. E um dos pilares da economia é a ordem, qualquer que ela seja, inclusive a ordem imposta pelos militares. Sem ordem, a economia perde, e os economistas de há muito isso perceberam. Assim, o que há de emblematicamente diferente entre o cenário que desencadeia o golpe militar de 1964 e a nossa realidade atual radica exatamente na economia, o que, aliás, explica a forte reação de entidades como FIESP e FEBRABAN a qualquer especulação de que haveria um golpe militar. Se em 1964, a elite econômica apoiou o golpe, agora a mesma elite o rejeita peremptoriamente, porque percebe que perderia seus lucros e vantagens com a desordem que se instalaria em uma sociedade bastante polarizada, inclusive entre os militares. Frases como a do ministro da economia, no sentido de que as manifestações de 7 de setembro de 2021 atrapalham a economia, são bastante esclarecedoras.

Donde podemos concluir que é a economia que determina, ela própria, segundo seus interesses, a possibilidade de que venha a existir ou não golpe. Temos hoje uma economia altamente estruturada e cujos interesses na mantença da ordem tornaram-se ainda mais importantes. Os juristas ingenuamente tributam à Constituição de 1988 a cidadela contra golpes de Estado. Quiçá tenham um pouco de razão, se considerarmos a proteção tão intensa que essa mesma Constituição confere ao poder econômico, como se vê do artigo 192, sobretudo depois da modificação que foi operada pela Emenda 40, de 2003, emenda, aliás, aprovada durante o governo LULA.

 

 

2 COMENTÁRIOS

  1. Assim como o jornalão porta-voz dos interesses de Washibgton no Brasil – a famigerada Folha de S.Paulo – este artigo vai no viés de aproximar figura política tão importante como Jango deste infeliz e acovardado Bolsonaro. Há neste texto algo que Nelson Rodrigues alcunharia como idiotice da objetividade. Ou seja, ao comparar objetivamente tais fatos e épocas de conjuntura social tão diferentes, comete-se o erro de não colocar em foco a situação geopolítica em que ocorreram estas ações políticas. Se Jango tinha o apoio de oficiais de baixa patente – algo natural para qualquer presidente que não cumpra um papel de fantoche da finança transacional -, as agências de inteligência estadunidenses já dominavam os golpistas das FAB (alta patente!, claro), pois Jango, inevitavelmente influenciado por Brizola e pelo trabalhismo, pretendia realizar no país reformas de base em campos como moradia e no campo, a tão temida reforma agrária, que também pode ser vista como agricultura familiar. Com isso, o Brasil além de ter um Estado mais presente nas necessidades básicas do povo, teria garantida sua segurança alimentar – visto que os pequenos agricultores poderiam fazer baratear o valor do alimento -, e além disso as pessoas teriam onde morar. Isso atingiu diretamente o coração de Washington, que não permitiria de forma alguma o desenvolvimento do Brasil sem a “muleta” da finança transacional. E foram eles que treinaram e iniciaram o primeiro Golpe de Estado de 64, colocando seus títeres no poder e influenciando a opinião pública por meios dos jornalões. Portanto, comparar momentos históricos tão díspares por meio destas objetividade às quais Nelson Rodrigues tanto combatia, faz este artigo parecer um tanto obtuso. Se as peças às quais você utiliza aqui para comprovar sua tese apresentam supostos paralelos, a tabuleiro histórico não as valida. Bolsonaro não tem apoio nenhum, em verdade, ele é filhote da turma do Silvio Frota, que rompeu com Geisel (em 1985!) quando este se colocou como um desenvolvimentista-nacional, e desta turma de militares também saíram Mourão, General Heleno e, inclusive, Bolsonaro! Turma esta que advém dos golpistas de 64! O Jair é controlado pelo Comando Maior do Exército, simplesmente isso, essa suposta união com policiais ou caminhoneiros é mera bravata inventada para manter viva sua patota de apoiadores, visto que está cumprindo um papel funcional perante às FAB, ligadas à Washington. E é exatamente por isso que o paralelo realizado no artigo – e também na Folha – inexiste quando consideramos a História – real-politik – do país.

    • Respeito sua análise, mas algo nela me faz lembrar o conteúdo da entrevista de NELSON RODRIGUES, na estreia das “páginas amarelas” da Veja, edição de 4 de junho de 1969, especialmente a última resposta que ele deu a seu entrevistador, Luiz Fernando Mercadante. Sugiro a leitura. Mas de todo o modo, agradeço por sua atenção a meu texto.

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