Causou grande alarde, sobretudo na comunidade jurídica, o requerimento apresentado pelo Presidente da República para que o Senado Federal instaure processo para apuração de crime de responsabilidade de um ministro do STF, ao qual atribui a prática de atos que, segundo o requerimento, devem se subsumir a princípios e condutas previstas na lei federal 1.079/1950 – que é a lei que define os crimes de responsabilidade imputados ao Presidente da República e a qualquer Ministro de Estado, lei que também regula o respectivo processo de julgamento.
Quanto aos ministros do STF, é da tradição de nosso direito constitucional, iniciada com a Constituição de 1946, que se preveja na Constituição que eles devam ser processados e julgados por crime de responsabilidade pelo Senado Federal, e essa tradição foi mantida pela Constituição de 1988 por seu artigo 52, inciso II. Importante o registro de que, durante a vigência da Constituição de 1937, não se aplicava aos ministros do STF o que era aplicado apenas ao presidente da república em termos de crimes de responsabilidade, e a rigor não havia norma que previsse como se daria o processo de responsabilidade do ministro do STF, o que somente surge com a Constituição de 1946, que passa a prever a competência exclusiva do Senado para o processo e julgamento dos ministros do STF, mas não havia ainda lei que previsse a condutas e o procedimento a adotar-se, o que ensejava fossem aplicadas as normas do regimento do Senado Federal.
São diversos os princípios previstos como “crimes de responsabilidade” no artigo 4o da lei federal 1.079/1950, e as condutas que ali se sancionam decorrem desses princípios, de modo que esses tipos legais abarcam uma série de situações, como, por exemplo, a que impõe observe o agente público a probidade na administração, o livre exercício dos poderes constitucionais e dos direitos políticos, individuais e sociais. E quando se trata de princípios, é-lhes imanente o serem indeterminados, no sentido de que seu conteúdo abre um considerável espaço de liberdade de conformação, a ser exercido pelo intérprete da norma, no caso, pelo Senado Federal. No processo de responsabilidade instaurado contra o presidente da república, ministro de estado e ministro do STF, há sempre um importante componente público, decisivo seja para determinar a instauração do processo, seja em especial quando se trata de decidir se o imputado deve ou não ser afastado do cargo.
E quando falamos em afastamento do cargo, falamos no instituto jurídico do “impeachment”, nome formado a partir do verbo “impeach”, que, em inglês, significa ser responsabilizado perante um tribunal por ilegalidades ou irregularidades. Instituto que, surgido nos Estados Unidos, ali tivera em 1974, com uma séria crise constitucional (o conhecido caso “Watergate”), um significativo desenvolvimento na teoria e prática do Direito Constitucional, como observa MARCELO CAETANO em seu indispensável livro “Direito Constitucional”, que permanece ainda hoje como a “bíblia” daqueles que, dedicando-se ao estudo do Direito Constitucional, não se contentam com “constitucionalistas” cujo único talento é reproduzir o texto constitucional com uma anotação tão singela, quanto dispensável ao leitor.
MARCELO CAETANO, ao tratar do caso “Watergate”, observa que a prática constitucional depois do caso Watergate apresentou importantes alterações, e de fato o grau de desenvolvimento alcançado pelo instituto do “impeachment” deve-se sobretudo àquele episódio da história norte-americana.
Mas quando falamos do “impeachment” de um ministro do STF, entra em questão um emblemático princípio, que é o da independência dos tribunais, princípio que, como observa outro insigne constitucionalista, também português, CANOTILHO, “é um daqueles Kampfbegriffe (‘conceitos de luta’) de que está povoado o direito. Através da proclamação da independência dos tribunais pretendeu-se reagir contra a função de julgar do monarca”. O princípio da independência, constitui, portanto, o núcleo de garantia de um Estado de Direito.
Destarte, quando se atribui a um ministro do STF a prática de crime de responsabilidade nos termos do que prevê a lei 1.079, a questão que envolve a independência do Poder Judiciário surge como a principal matéria jurídica a ser enfrentada, tornando indispensável examinar se o ministro, na decisão que adotou e que pode, segundo quem acusa, ter praticado crime de responsabilidade, sobre-excedeu ou não o limite de independência que a Constituição fixa, e se o sobre-excedeu, com qual objetivo o terá feito, aspectos que sobrelevam perscrutar nesse contexto. Como diz o mesmo CANOTILHO, “a independência funcional é uma das dimensões tradicionalmente apontadas como constituindo o núcleo duro do princípio da independência. Significa ela que o juiz está apenas submetido à lei – ou melhor, às fontes de direito jurídico-constitucionalmente reconhecidas – no exercício de sua função jurisdicional”.
Óbvio que a independência de um ministro do STF não é um predicado com carga tão absoluta que obste possa ele ser processado por crime de responsabilidade. Basta considerar que a Constituição, estabelecendo que o ministro do STF está sujeito ao crime de responsabilidade, define que esse predicado não é assim tão absoluto, trazendo um “quid” que distingue o nosso regime jurídico-político a aplicar-se quanto ao ministro do STF, porquanto não se adota, no Brasil e em face da Constituição de 1988, o princípio da irresponsabilidade absoluta dos ministros do STF por suas decisões, dado que, sujeitos aos princípios e regras da Constituição e da lei 1.079, pode-se apurar a sua responsabilidade em face desses mesmos princípios e normas.
É correto dizer-se, portanto, que, em regra os ministros do STF não podem ser responsabilizados por suas decisões, salvo a exceção prevista na Constituição, que radica no se poder instaurar processo por crime de responsabilidade naquelas hipóteses que estão fixadas na referida lei 1.079.
Em si, o episódio que envolve o requerimento formulado pelo Presidente da República ao Senado Federal, solicitando instaure procedimento por crime de responsabilidade atribuído a um ministro do STF, desperta a atenção por se tratar de um episódio único em nossa história, mas ao mesmo tempo demonstra que estamos a solidificar nosso Estado de Direito, na medida em que poderemos compreender melhor o conteúdo e o alcance do princípio da independência da magistratura.