Lendo a crônica de GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ,  “A Poesia ao Alcance das Crianças”, escrita em 1981, constatei como é impossível ao legislador querer controlar o que os juízes fazem das normas legais, quando as interpretam.

Nessa crônica, GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ narra alguns curiosos episódios que envolveram a interpretação que professores e críticos de literatura haviam feito de sua obra “Cem Anos de Solidão”, interpretação que surpreendera o próprio autor, tão deslocada estava do sentido original do que havia escrito:

Um professor de literatura avisou, no ano passado, à filha mais nova de um grande amigo meu, que seu exame final versaria sobre Cem anos de solidão. A menina se assustou, com toda a razão, não só porque não lera o livro mas porque precisava estudar outras matérias mais importantes. Por sorte, seu pai tem uma sólida formação literária e um rato instituto poético, e a submeteu a uma preparação tão intensa que, sem dúvida, chegou ao exame mais bem preparada que o professor. Mas o professor lhe fez uma pergunta surpreendente: que significa a letra ao contrário no título de Cem anos de solidão? Referia-se à edição de Buenos Aires, cuja capa foi feita pelo pintor Vicente Rojo com uma letra invertida, porque assim lhe indicou sua absoluta e soberana inspiração. A menina certamente não soube o que responder. Vicente Rojo me disse quando lhe contei a história que ele tampouco teria sabido responder”. 

Dois críticos de Barcelona me surpreenderam com a descoberta de que o Outono do patriarca tinha a mesma estrutura do terceiro concerto para piano de Béla Bartok. Isto me causou uma grande alegria pela admiração que tenho por Béla Bartok, e em especial por esse concerto, mas no entanto não pude entender as analogias daqueles dois críticos. Um professor de literatura da Escola de Letras de Havana destinava muitas horas à análise de Cem anos de solidão e chegava à conclusão – lisonjeira e deprimente ao mesmo tempo – de que não oferecia nenhuma solução. Tudo isto acabou por me convencer de que a mania interpretativa termina por ser com o tempo uma nova forma de ficção que às vezes encalha no disparate”. 

O que fazem alguns juízes quando interpretam normas legais é rigorosamente o mesmo que o escritor GABRIEL GÁRCIA MÁRQUEZ identificou em certas interpretações de sua obra tão criativas que, a rigor, constituíam uma “nova forma de ficção”. No  caso da interpretação dos juízes, significa isso dizer e reconhecer que a interpretação que muitas vezes fazem da norma legal é tão distante (e disparatada) do sentido original da norma, que a rigor não estão a interpretar, mas a criarem a norma legal, usurpando uma competência que é só do legislador.

Propõe o autor de “Cem Anos de Solidão” que um curso de literatura não deveria ser mais do que um bom guia de leituras, o que afastaria o risco de interpretações tão distantes do sentido original de uma obra. Proponho o mesmo para as escolas de juízes, que devem se limitar a dar a conhecer apenas as obras jurídicas clássicas, ao lado daquelas que compõem uma sólida formação geral. Qualquer outra pretensão, como adverte GABRIEL GÁRCIA MÁRQUEZ, só serve para assustar as crianças, digo, os juízes.

 

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