Há quem afirme que estaríamos nós, no Brasil, durante o governo Bolsonaro, a viver sob um estado de exceção. O leitor que acompanha os nossos escritos sabe que não nos alinhamos à política do atual governo, mas daí a se poder afirmar que ele teria implantado um estado de exceção vai uma longa distância – que não foi percorrida.
Dizer-se, pois, que a legislação editada durante o governo Bolsonaro caracteriza-se por terem sido propostas ou adotadas medidas que configurariam um estado de exceção, é desconhecer o papel do Direito que, como observa MARX com a sua perfeita acuidade, é e sempre será sob todas as formas de Capitalismo um instrumento de controle da sociedade e de poder. Em sua terminologia própria, afirma MARX que o Direito é uma superestrutura, caracterizada esta por ser uma luta econômica entre classes. De modo que o Direito, sob o Capitalismo, é, e não pode deixar de ser um instrumento de poder da classe dominante.
E isso é verdadeiro inclusive para a legislação que de algum modo beneficia quem não integra a classe dominante. Considere-se a aguda observação de Marx no sentido de que a formulação mais geral e ampla dos direitos de liberdade deve-se sobretudo a uma necessidade imposta à classe dominante, que, obrigada a apresentar o seu interesse como se igual ao de todos os membros da sociedade, legisla dessa forma ampla e genérica como uma estratégia para a proteção de seus específicos interesses (in Feuerbach. Oposição das Concepções Materialista e Idealista, Marx-Engels Obras Escolhidas, t. I, p. 40, edições Avante – Lisboa e Progresso – Moscou, 1982).
Se formos ao governo COLLOR, encontraremos a utilização do Direito positivo como instrumento de poder da classe dominante, ou não podemos assim caracterizar a legislação que bloqueou ativos financeiros? E a reeleição no governo FERNANDO HENRIQUE, criada por emenda constitucional, não seria essa também uma forma de estado de exceção, na medida em que violou diretamente a nossa democracia? E a privatização ocorrida nesse mesmo governo também não constitui exemplo de uso do Direito positivo como instrumento em favor da classe dominante? Mesmo em governos mais liberais (mas também adeptos do Capitalismo) encontraremos medidas legais editadas claramente em favor de bancos e instituições financeiras, como sucedeu nos dois governos LULA.
O estado de exceção configura-se apenas e tão somente quando se retira de modo substantivo a liberdade, em qualquer daquelas principais feições que a Constituição de 1988 prevê, como, por exemplo, a liberdade de associação, de trabalho, de expressão. E isso não se pode afirmar exista ou tenha existido durante o atual governo, não em escala diferente do que sucedeu nos governos anteriores.
Alguém então poderia objetar: e o uso frequente da lei de Segurança Nacional pelo governo Bolsonaro, não caracterizaria a intenção de reduzir ou enfraquecer a liberdade? Se considerarmos que se trata de uma lei em vigor e que o governo está a pleitear ao Poder Judiciário que a faça aplicar, concluiremos que o atual governo está a cumprir o Estado de Direito, na medida em que quer ver aplicada uma lei que, até o momento, está em vigor. Aliás, o simples fato de reconhecer o Poder Judiciário como o intérprete mais autorizado dessa lei, significa que o atual governo está a cumprir a Constituição de 1988, com todas as liberdades que a lei prevê, e também com todas as restrições de liberdade também previstas. Caberá ao STF dizer, portanto, se a lei de Segurança Nacional é válida ou não, o que demonstra o respeito do governo atual à autonomia do Poder Judiciário.
Para concluir, devemos observar que qualquer governo utiliza do Direito positivo como um instrumento para o exercício de seu poder, e não há nada diferente no governo Bolsonaro que não tenha existido em todos os nossos governos anteriores, começando com o breve governo de DEODORO DA FONSECA. O Direito é uma superestrutura, mas uma superestrutura limitada à Economia, pois como anota MARX: “O direito não pode nunca ser maior que a estrutura econômica da sociedade e o desenvolvimento cultural por ela determinado”. (MARX, citado em sua biografia, por Isaiah Berlin, p. 212 – casa). Isso é que explica a razão pela qual o Direito é um instrumento de poder da classe dominante, e como tal vem sendo usado pelo governo Bolsonaro, na exata medida como dele se utilizaram todos os governos anteriores. De maneira que dizer que estamos a viver sob um estado de exceção é desconhecer a essência do Direito como instrumento de poder.