Em tempos de pandemia, certos termos tornaram-se de uso bastante frequente, gerando certa confusão quanto ao que cada um significa no campo do direito positivo. É o que ocorre com o “lockdown” e o estado de sítio, que para alguns se equivalem à natureza jurídica e efeitos. Nada mais equivocado.

O estado de sítio está disciplinado pela Constituição de 1988 em seus artigos 137-140, e se trata de uma medida de caráter excepcional, a ser adotada quando se revelar indispensável em face uma “comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa”, ou quando existir “declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira” (art. 137, I e II).

Decretado o estado de sítio,  garantias constitucionais ficam imediatamente suspensas, mas apenas aquelas necessárias ao controle da situação, ou seja, necessárias para que se retome a normalidade institucional.  De modo que não são todas as garantias constitucionais atingidas pelo decreto do estado de sítio. A Constituição de 1988 cuidou  fixar que medidas podem ser adotadas contra as pessoas em geral. São elas: a obrigação de permanência em localidade determinada; detenção em edifício não destinado a acusados ou condenados por crimes comuns; restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na forma da lei; a suspensão da liberdade de reunião;
busca e apreensão em domicílio; a intervenção nas empresas de serviços públicos; e, por fim, a requisição de bens. Importante observar que todas essas medidas devem guardar relação de necessidade com o objetivo de restauração da situação de normalidade.

O “lockdown” (que, em inglês, significa “confinamento”) não tem previsão legal em nosso ordenamento jurídico, constituindo um termo que foi utilizado pelo Direito por aqueles países que primeiro enfrentaram a pandemia, quando se viram obrigados a determinar medidas de isolamento social. Nós o importamos. Trata-se, pois, de uma medida de natureza marcadamente sanitária, ou seja, de saúde pública, necessária a evitar a propagação de um vírus.

Surge aí um primeiro e importante elemento que distingue o estado de sítio do “lockdown”, pois que este é uma medida de natureza sanitária, enquanto o estado de sítio é uma medida de natureza essencialmente política, o que traz uma significativa distinção no campo do controle jurisdicional, pois que, em sendo o estado de sítio uma medida de natureza política, esse controle é bastante limitado, diversamente do que se dá com as medidas estatais que imponham o “lockdown”, em que a discricionariedade, atributo do Poder Público, pode ser examinada judicialmente em maior grau, sobretudo quando se trate de perscrutar se a medida de isolamento social é adequada ao fim a que se destina, cabendo ao Poder Judiciário ponderar os custos e benefícios desse tipo de medida, em um controle que lhe é dado realizar por meio da aplicação do princípio da proporcionalidade.

Bem diverso, e muito mais restrito é o controle que o Poder Judiciário realiza, e pode realizar em face do decreto de estado de sítio. Apenas aspectos formais podem ser objeto de análise jurisdicional nesse caso.

Comparar, pois, o estado de sítio ao “lockdown” é desconhecer a natureza jurídica de um instituto tão importante como é o do estado de sítio, que tem larga tradição histórica em nosso país (adotado já no início de nossa República por decreto do presidente FLORIANO PEIXOTO), além de não se considerar, como é necessário, a que finalidade objetiva atender um e outro. Enquanto o estado de sítio é uma medida de natureza essencialmente política, necessária para a manutenção dos Poderes constituídos, o “lockdown” é uma medida de salvaguarda sanitária, imposta quando a saúde pública a exige, como na realidade em que vivemos. Nenhuma garantia constitucional está a ser arrostada pela medida de “lockdown”, não com a mesma natureza, alcance e efeitos que ocorre quando se trata de estado de sítio.

Poder-se-ia argumentar que o “lockdown” interfere na liberdade de ir e vir e na liberdade de trabalho. Trata-se de efeitos que são necessariamente decorrentes da medida de isolamento social, e constituem, de resto, medidas que são bastante comuns na realidade cotidiana de todos nós,  pois que há diversas limitações que as leis impõem quanto ao que se pode ou não fazer em determinadas circunstâncias de tempo e de espaço, como se dá, por exemplo, com o rodízio de veículos, ou com a restrição estabelecida para o exercício de determinadas profissões. Portanto, não se pode argumentar que tais medidas decorrentes do poder de polícia confundem-se com aquelas que são impostas quando se cuida do estado de sítio. Enquanto o “lockdown” é medida decorrente do poder de polícia, e como tal aplicada em um regime de normalidade, o estado de sítio é medida política e que somente se pode adotar em situações excepcionais, quando, portanto, a normalidade institucional não exista.

De resto, equivalesse o “lockdown” ao estado de sítio, e não seria dado ao Poder Judiciário ponderar os interesses em conflito, como está a fazer quando  discute acerca da proporcionalidade ou razoabilidade do “lockdown”.

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