Analisaremos neste breve ensaio as seguintes ordens de questões, que constituem hoje um tema bastante discutido no Brasil, depois que alguns governadores e prefeitos anunciaram a intenção de impor como obrigatória a vacinação para “Covid”, enquanto a União Federal afirma que deverá adotar a vacinação como uma medida facultativa. Estas são as questões:

  • pode o Estado brasileiro impor como medida obrigatória a vacinação para a “Covid”? 
  • e o particular, em se tratando de uma medida obrigatória, pode recusar-se a tomar a vacina? 

Na primeira questão, examina-se o poder de o Estado limitar ou restringir a liberdade individual, e em que condições lhe é permitido fazer isso de acordo com o nosso ordenamento jurídico em vigor.

Na segunda questão, o que se deve analisar é, em surgindo um conflito entre o direito de o Estado de impor a vacinação (pressupondo que exista esse direito em favor do Estado),  e o direito subjetivo do particular de não querer se submeter à vacinação, instalando-se um conflito, de que instrumento o Poder Judiciário deve lançar mão para o solucionar.


PODER DE LEGISLAR E COMPETÊNCIA PARA LEGISLAR

O artigo 196 da CF/1988 impõe como dever jurídico ao Estado o de atuar de modo que possa obter, na medida do possível, a redução do risco de doenças em geral, obrigando-o, pois, a adotar ações que atendam a esse objetivo, sobretudo em se tratando de doenças epidemiológicas, conforme estatui o artigo 200, inciso II, da CF/1988.

Fundado nesse valor jurídico, e para o proteger, não há dúvida de que o Estado pode e deve lançar mão de medidas como a vacinação obrigatória. Medida, aliás, que já conta com previsão legal e expressa, como sucede no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei federal 8.069, artigo 14, parágrafo parágrafo 1o.), e nomeadamente como determina a novel Lei federal 13.979/2020, editada exatamente para que o Brasil pudesse enfrentar a pandemia pelo “Covid”. O artigo 3o. dessa Lei determina que o Estado pode, “para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, poderão ser adotadas, entre outras, as seguintes medidas”, impor a vacinação, medida, pois, tornada obrigatória em nosso Ordenamento Jurídico.

Daí se poder afirmar, com segurança, que o Estado brasileiro detém o poder de impor como obrigatória a vacinação obrigatória, conforme a legislação já existente o permite fazer.

E quanto à competência para legislar a respeito dessa matéria?

Nos termos do artigo 23, inciso II, da CF/1988, a saúde pública constitui matéria da competência comum entre a União e os demais entes públicos, e segundo o parágrafo único desse mesmo artigo, leis complementares devem ser editadas para fixar normas de cooperação entre todos os entes públicos, buscando, por óbvio, uma harmonização e padronização no conjunto de procedimentos de proteção à saúde, o que evidentemente se deve aplicar a uma medida como a de vacinação, que não pode ser limitar a um Estado-membro, ou a um município.

Destarte, como não há, ao menos por ora,  lei complementar que tenha disciplinado a questão, e como se deve considerar que a vacinação deve alcançar toda a população, cabe apenas à União legislar a respeito, para a determinar como obrigatória ou não. Os Estados-membros, o Distrito Federal, os Territórios e os Municípios, não podem, portanto, legislar a respeito, e terão de resto que observar os critérios técnicos, padronizados e únicos para todo o Brasil, o que passa necessariamente pela aprovação da vacina pela ANVISA, que é uma agência federal reguladora.


A LIBERDADE DO PARTICULAR

Havendo, como há lei concedendo ao Estado o poder de impor como obrigatória a vacinação para a “Covid”, surge a questão: o particular pode se recusar a se submeter à vacinação obrigatória, dado que a Constituição de 1988 reconhece-lhe um considerável espaço de liberdade, inclusive quanto a poder decidir o que lhe melhor aprouver para o cuidado de sua saúde, ou mesmo para justificar sua recusa fundada em uma razão moral ou de consciência?

Como observa RONALD DWORKIN em “Levando os Direitos a Sério”,   quando duas regras entram em conflito, uma delas não pode ser válida, ou como diz o filósofo ISAIAH BERLIN, uma deve ceder espaço para outra, conforme as circunstâncias do caso em concreto e a ponderação que sobre elas for feita.

Trata-se de uma questão complexa, porque em se desobrigando uma pessoa de se submeter a vacina, poderá ocorrer de essa pessoa, infectando-se, transmitir a doença a outras pessoas que ainda não tiverem sido vacinadas, havendo, pois, um risco de contágio que pode e deve ser utilizado pelo Estado como razão para justificar a prevalência de sua posição jurídica.

Doutro lado, o particular que se recusa a se submeter à vacina pode argumentar que não lhe parece que a vacina seja eficaz, ou não tão eficaz que compense os riscos que podem surgir com a vacina ministrada (efeitos colaterais que estão presentes em todas as vacinas). Como também pode argumentar que se as demais pessoas forem vacinadas, e se a vacina é tão eficiente assim, a sua recusa não trará nenhum risco de contágio, porque as demais pessoas, já vacinadas, não correrão o risco de se contaminar.

Como ensina mestre CANOTILHO, nesse tipo de conflito de interesses o Poder Judiciário deve analisar as circunstâncias do caso em concreto, ponderando-as de modo que possa escolher qual dos interesses deverá prevalecer. É o que ocorreu, ou deveria ter ocorrido, naqueles casos que CANOTILHO extraiu da realidade jurídico-constitucional portuguesa e que constituem temas para a sua análise no livro “Estudos sobre Direitos Fundamentais”. Nenhum deles trata da questão da vacinação obrigatória, mas o leitor, conhecendo das peculiaridades de cada um desses casos, poderá identificar argumentos que se aplicarão ao nosso caso da vacinação obrigatória para a “Covid”.

Teremos que aguardar, pois, que surjam os estudos científicos que comprovem a eficácia da vacina para a “Covid”, e como a ANVISA os terá analisado, além de ser indispensável conhecer das razões concretas que aquele que se recusar a se submeter à vacinação obrigatória terá apresentado, para que então o Poder Judiciário, no caso em concreto, decida qual interesse deve prevalecer. O que se pode dizer de antemão é que, na esteira do que enfatiza DWORKIN, em se tratando de um conflito entre regras e de direitos, a solução não pode ser genérica, o que significa dizer que a decisão terá que ser dada em face de cada caso em concreto, e não em controle abstrato de constitucionalidade.

 

 

 

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