Há algumas expressões latinas empregadas no mundo do Direito que, em determinados momentos da história, ressurgem   em sentido dissociado de sua origem ou de sua conformação mais adequada, conquistada com a civilização.  Quase sempre o uso dessas expressões apresenta uma intenção enviesada, que é a de escapar ao controle de legalidade pelo juiz.

É o que vem sucedendo no Brasil com a expressão latina “interna corporis”, empregada nos últimos dias em diversos contextos, todos dissociados do sentido original e adequado dessa expressão.

A tradicional expressão “interna corporis” nasceu para representar a ideia de que determinados assuntos relacionados diretamente à organização funcional de um determinado poder ou órgão são de atribuição exclusiva desse mesmo órgão. A expressão latina nasceu, pois,  no período da Idade Média, quando se estabeleceu a divisão entre o poder secular (da igreja) e do poder temporal (do Estado), definindo que disputas internas relacionadas a cada um desses lados deveriam ficar sob a conveniência e a oportunidade de quem detinha o respectivo poder.

A expressão latina foi depois transposta ao campo do Direito. Com efeito, de um período em que o Poder Judiciário não podia em absoluto apreciar o mérito do ato administrativo emanado do Poder Executivo, como também não podia analisar a validade de leis produzidas pelo Poder Legislativo, o Direito passou para uma fase, criada pela jurisprudência (ou seja, por necessidades práticas), em que ao juiz foi reconhecido o poder de examinar a constitucionalidade das leis, o mesmo vindo a suceder com alguns aspectos dos atos administrativos, embora ainda se reconhecesse intocável o mérito do ato administrativo. Hoje, a doutrina, incorporando as conquistas obtidas pela jurisprudência, vem reconhecendo que a análise da constitucionalidade das leis e de certos aspectos do ato administrativo decorre do princípio do devido processo legal “substancial”, e que isso constituiu um saudável imperativo de um Estado de Direito, com uma Constituição que reconhece ao Poder Judiciário o papel de seu principal intérprete. Estendido o poder dos juízes, diminuiu-se consideravelmente o número de matérias que podem escapar ao controle jurisdicional.

Também é de se considerar que as sociedades, em se tornando mais complexas, passaram a exigir textos constitucionais mais extensos, os quais passam  a abarcar um número muito maior de matérias,  o que evidentemente diminuiu o campo de matérias reservadas à decisão exclusiva de um determinado órgão.

Na atualidade,  são diminutos os temas de direito público que se podem qualificar como “interna corporis”, porque as normas constitucionais não deixam espaço para esse tipo de regulação exclusiva e infenso ao controle jurisdicional. Pode-se dizer, portanto, que são assuntos secundários aqueles para os quais se pode empregar legitimamente a expressão “interna corporis”, relacionados a aspectos de organização administrativa (no campo da logística, portanto). Por isso que se trata de matéria típica a regimentos, que são adequados veículos para esse tipo de regulação.

Observe-se, por fim, que mesmos  assuntos secundários de organização podem afetar direitos que estejam previstos em normas constitucionais. Nesse caso, deixam de ser assuntos “interna corporis”, para se tornarem temas que podem ser levados ao exame do Poder Judiciário, conforme exige a Constituição.

 

 

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