O caso: em 28 de setembro de 1871, entrou em vigor a lei que ficou vulgarmente conhecida como “A Lei do Ventre Livre”, por meio da qual se reconhecia a liberdade aos filhos dos escravos nascidos após a promulgação da referida lei, bem assim a daqueles que, até então escravos, não tivessem sido matriculados por seus senhores,  no prazo fixado pela lei. Havia, contudo, uma dúvida suscitada pelo artigo 19 do regulamento editado para a implementação prática da lei. Esse artigo dispunha que: “Os escravos que, por culpa ou omissão dos interessados, não forem dados à matrícula até o dia 30 de dezembro de 1873, serão por esse fato considerados libertos, salvo aos mesmos interessados o meio de provarem em ação ordinária, com citação e audiência dos libertos e seus curadores: (I) o domínio que têm sobre eles; (2) que não houve culpa ou omissão de sua parte em serem dados à matrícula nos prazos dos artigos 10 e 16”. Fundado nesse artigo 19, um proprietário de escravos ganhara, em juízo, o direito a manter a sua propriedade, malgrado não tivesse levado a registro os escravos. A sentença foi levada a cumprimento, quando, então, o presidente da providência do Rio de Janeiro suscitou dúvida quanto ao que fora decidido. O Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas foi chamado a emitir um parecer.

PARECER: MACHADO DE ASSIS ocupava o cargo de chefe de secretaria do referido Ministério e lhe coube emitir o parecer solicitado. Eis o teor do parecer datado de 21 de julho de 1876, que envolve matéria exclusivamente jurídica:

“Pergunta-se: – Das sentenças que, na hipótese do artigo 19, forem contrárias à liberdade, cabe apelação ex-officio? Minha resposta é afirmativa. Para responder de outro modo, fora preciso criar entre os dois casos uma distinção que não existe, e que, a meu juízo, repugna ao espírito da lei. O argumento principal que se acha nestes papéis, favorável à negativa, é que as causas de que trata o artigo 19 do regulamento não são a favor da liberdade, isto é, não são propostas pelo escravo, mas pelo senhor, a favor da escravidão, entenda-se a favor da propriedade. Esta diferença não é radical, mas aparente e acessória. As causas do artigo 19 é certo que não as propõe o escravo, mas o senhor; não tem por objeto imediato a libertação, mas a prova da propriedade do senhor e da força maior que deu lugar à falta de matrícula. Mas em que é que tal diversidade de origem pode eliminar o objeto essencial e superior do pleito, isto é, a liberdade do escravo? Importa pouco ou nada que o recurso à justiça parta do escravo ou do senhor, de que o resultado do pleito é dar ou retirar a condição livre ao indivíduo nascido na escravidão. Acresce que, na hipótese do artigo 19, a decisão contraria a liberdade, é contrária à liberdade adquirida, anula um efeito da lei, restitui à escravidão o indivíduo já chamado à sociedade livre; neste caso como no caso do artigo 7o. da Lei, é a liberdade que perece; em favor dela deve prevalecer a mesma disposição. (…)”.

Se lêssemos esse judicioso parecer, sem que pudéssemos conhecer seu autor, poderíamos com tranquilidade atribuir a autoria a um RUI BARBOSA, a um CLÓVIS BEVILACQUA, ou ao emérito civilista, conselheiro LAFAIETE PEREIRA. A consistente e bem estruturada argumentação  jurídica utilizada no parecer demonstra um perfeito conhecimento dos arcanos que envolvem a Hermenêutica Jurídica, nem sempre de acesso a operadores do Direito, quanto mais a leigos. Surpreende, pois, que seja da lavra de MACHADO esse pareces, mas não há dúvida que ele é de sua pena.

Assim, o autodidata MACHADO demonstrava, também no campo do Direito, ser o gênio que a Literatura já conhecia.

FONTE: valemo-nos aqui da conhecida biografia escrita pelo imortal, R. MAGALHÃES JUNIOR, obra em quatro volumes, publicada pela editora Civilização Brasileira sob o título “Vida e Obra de Machado de Assis”.

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