Embora com uma nota de exagero, pode-se dar razão a um juiz da Suprema Corte Americana quando disse que a constituição era aquilo que os juízes diziam que ela era. De fato, a interpretação da norma, ou seja, a definição do conteúdo e alcance de cada norma, sobretudo da norma constitucional, é da atribuição exclusiva do juiz, quando se trata de conferir a essa interpretação um caráter obrigatório, tanto quanto a lei o possui.

Como observa KELSEN no último capítulo de sua “Teoria Pura do Direito”, dedicado à interpretação, a norma legal pode ser equiparada a uma moldura de um quadro, e este quadro é definido pela interpretação que o juiz faz da norma. Pode suceder, como adverte KELSEN, de o juiz colocar dentro da moldura aquilo que não está na norma, e aquilo, pois, que não deveria estar na moldura, mas ali está, colocado pelo juiz, de modo que, com o trânsito em julgado da sentença, a moldura amplia-se. Essa observação de KELSEN deve ser entendida como uma advertência aos juízes, de que devem, tanto quanto possível, circunscrever sua interpretação à moldura que a lei fixa.

As normas legais, é certo, modificam-se quando são submetidas ao trabalho de interpretação dos juízes. Mas  por vezes modificam-se tanto que passam a ser  uma outra norma, totalmente dissociada do sentido original fixado pelo legislador. Note-se que não estamos a falar aqui da evolução da sociedade e da necessidade de a interpretação da norma observar essa evolução. Estamos, sim, a falar do que ocorre quando o juiz, ele próprio, sobre-excede a interpretação, para em realidade criar uma norma.

Utilizamo-nos de dois exemplos, mas muitos outros poderiam nos servir. O primeiro diz respeito ao inciso XIV do artigo 37 da CF/1988, do qual já falamos no bojo da reforma administrativa. O outro exemplo refere-se ao Código Nacional de Trânsito. Vejam como, pelas mãos dos juízes, o conteúdo  dessas duas normas legais surge totalmente modificado.

Estabelece o artigo 37, inciso XIV, da CF/1988, que nenhuma vantagem pecuniária pode ser aproveitada na base de cálculo de outra vantagem pecuniária, e ponto final, sobretudo por se tratar de uma constitucional. Mas a despeito da clareza dessa norma,  uma grande quantidade de julgados afirma exatamente o contrário, ou seja, que uma vantagem pecuniária pode ser aproveitada e utilizada na base de outra. A moldura foi tão ampliada nesse caso que fez surgir uma outra norma, como se o inciso XIV do artigo 37 quisesse dizer que uma vantagem pecuniária deve, sim, ser aproveitada na base de cálculo de outra.

O outro exemplo é tão significativo quanto. O Código Nacional de Trânsito fixa um prazo peremptório para que o proprietário do veículo indique o nome do suposto condutor, quando a esse condutor atribua a prática de uma infração de trânsito. Buscando garantir a segurança jurídica, e para evitar fraude, a norma legal fixa esse prazo, que, assinale-se, é peremptório, o que significa que, superado, torna perempto o direito de indicação do condutor. Mas também neste caso vários julgados têm desconsiderado o prazo fixado pela norma, e o que é pior, transmudando de peremptório esse prazo para o qualificar como facultativo, desconsiderando, pois, a perempção do direito. Destarte, a norma surgida pela interpretação judicial é rigorosamente inversa ao que o legislador fixou.

É como se o nosso Direito positivo tivesse incorporado uma norma à semelhança do Código Civil suíço, que concedia ao juiz o pode de criar a norma, como se fosse o próprio legislador.

UMBERTO ECO deu a seu livro sobre a interpretação o emblemático título “Os Limites da Interpretação”. Não é necessário dizer mais nada.

 

 

 

 

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