Parafraseando o jurista italiano, MAURO CAPELLETTI, que escreveu uma importante obra com o título “Juízes Legisladores?”, em que o mestre analisa o poder (muitas vezes desmesurado) dos juízes quando querem assumir o papel de legisladores, podemos no momento presente indagar: “Juízes Higienistas?”, para refletir sobre o papel a que muitos juízes brasileiros se arvoram, quando, atuando na Justiça Criminal, acreditam que é sua função a de higienizar, limpar, purificar, a sociedade brasileira.

Raras foram as vezes em que o legislador brasileiro conseguiu formular uma regra tão clara quanto objetiva, tão simples quanto eficiente, como a do artigo 59 do Código Penal, ao fixar os critérios que o juiz deve, obrigatoriamente, observar quando está a cuidar da dosimetria da pena a ser aplicada no processo penal:

“O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime”.

Mas como as coisas andam mudadas  no Brasil, não tardará que nalgum dia nos depararemos com uma outra redação a esse dispositivo legal, que, no sentir e no querer de alguns, deve ser “melhorado”, para que passe a abranger  critérios como o da raça do réu, de modo que o juiz possa aplicar uma pena mais grave a quem for da raça negra, e assim também a quem  for pobre (a norma pode até fixar um valor de referência para facilitar a vida do juiz no qualificar alguém como pobre ou rico), ou ainda a quem é de esquerda (para o caso do governo ser de direita).

De modo que os juízes higienistas terão todas as ferramentas necessárias para que possam purificar a nossa sociedade, trancafiando por vários anos aqueles aos quais a “sociedade” considere perigosos ou sem utilidade.

Olvidam esses juízes, contudo, de que a norma do artigo 59 (e nem qualquer outra norma de nosso direito em vigor) concede-lhes esse poder, senão que lhes reservam  uma função mais simples e mais digna: a de apenas cumprirem a lei, para a fazerem a mais justa possível,  sempre que estejam a julgar  aqueles que, desgraçadamente, tornaram-se réus em processos criminais, que é a situação mais delicada com a qual o juiz  lida, porque envolve a liberdade física do réu.

De há muito não exerço a judicatura na área penal, e por isso não sei se ainda hoje os inquéritos policiais encerram-se com um documento que eu sempre considerava como dos mais importantes. O nome desse documento era algo pomposo: “Informações sobre a Vida Pregressa”. Normalmente esse documento formava a única página do inquérito policial, ou vinha um pouco antes do  relatório da autoridade policial. Nele constavam informações sobre a infância do indiciado, como se formara a sua família (ou como se desformara), a que grau de escolaridade chegara, e outras informações muito importantes para que o juiz, ao aplicar o artigo 59 do Código Penal, pudesse fixar a pena mais justa possível. Hoje, ao que parece, essas informações não são mais coletadas, ou quando são servem apenas para muitos juízes higienistas possam seccionar a sociedade entre raças, entre pobres ou ricos, quantificando a pena segundo critérios que lhe pareçam convenientes.

Que a nossa sociedade é racista, não há quem possa duvidar. O nosso genial, LIMA BARRETO, autor da imortal obra “Recordações do Escrivão Isaias Caminha”, retratara com mão de mestre esse aspecto de nossa sociedade, que tão antigo parece inextinguível. Ele próprio, negro e pobre, vivia aquilo sobre o que escrevia. Recorde-se que LIMA BARRETO morreu em 1922, o que significa dizer que em nada evoluímos.

E já que falamos de “raça”, lembremo-nos do que a respeito escreveu ANATOLE FRANCE, hoje um pouco esquecido, mas que será sempre tido como um grande escritor:

Na maioria das vezes é tão difícil distinguir num povo as raças que o compõem como seguir no curso de um rio os riachos que se jogaram nele. E que é uma raça? Há realmente raças humanas? Vejo que há homens brancos, homens vermelhos e homens negros. Mas não se trata de raças, senão das variedade de uma mesma raça, de uma mesma espécie, que formam entre eles uniões fecundas e se misturam constantemente”. (ANATOLE FRANCE, Na Pedra Branca).

 

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here