Publicamos a sentença em que analisamos a conduta imputada a quem, nas eleições de 2018, doara acima do limite fixado no artigo 23, parágrafo 1o., da lei federal 9.504/1997, aplicando no exame da matéria a ponderação entre os interesses e valores em conflito, o que não é comum ocorrer na jurisprudência eleitoral.

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Vistos.

Invocando a aplicação da Lei federal 9.504/1997, que, por seu artigo 23, parágrafo 1º., regulamenta as doações por pessoas físicas a campanhas eleitorais, afirma o MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL que (…), qualificada nos autos, contra quem representa, violou a norma legal, ao doar acima do limite legal, pois que, nas eleições ocorridas em 2018, teria doado ao candidato, (…), a quantia de R$10.000,00 (dez mil reais), quando, segundo a norma legal, somente poderia ter doado R$7.511,79 (sete mil, quinhentos e onze reais e setenta e nove centavos), considerando os critérios legais para aferição do limite à doação, pugnando o MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL, nesse contexto, que se considere ter a autora violado a norma legal, de modo que se lhe aplique multa em até 100% (cem por cento) da quantia que excedeu a do limite legal.

Sob a forma de medida cautelar, acolhendo-se pedido do MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL, decretou-se a quebra do sigilo fiscal da representada. Implementada essa medida, o MINISTÉRIO PÚBLICO pôde ter acesso à declaração de imposto de renda apresentada pela representada.

Recebida formalmente a representação, procedeu-se à notificação da representada, que, no prazo legal, apresentou defesa, em que reconheceu como verdadeiro o fato de ter doado a importância de R$10.000,00 (de mil reais), e que o valor de fato supera o limite legal, mas obtemperando que não configurou o abuso do poder econômico, ou que o valor doado pudesse causar qualquer impacto sobre o resultado do pleito eleitoral.

As partes apresentaram alegações finais.

Nesse contexto, FUNDAMENTO e DECIDO.

A conduta descrita na representação, qual seja, a de ter a representada doado acima do limite legal, está bem caracterizada nomeadamente pela documentação fiscal, cabendo adscrever que a prática da conduta foi admitida pela autora, que, contudo, pleiteia se examinem circunstâncias que afastariam a ilicitude da sua conduta.

Pois que a representada afirma que é diminuto o montante que excedeu ao do limite legal, e que de qualquer modo o valor doado não configura a prática de abuso do poder econômico, ou mesmo que a doação tenha causado qualquer impacto no resultado das eleições.

Analisam-se essas argumentações.

De há muito a nossa jurisprudência eleitoral vem conhecendo de alegações do mesmo jaez de que a representada utiliza-se, quando considera a aplicação de princípios como os da insignificância, da razoabilidade e o da proporcionalidade, sendo certo que há uma consolidada posição no sentido de que esses princípios não podem ser aplicados aos casos de representação por excesso de doação, não ao menos para que escusem a conduta da ilicitude que a norma legal impõe. Conforme essa posição jurisprudência, tais princípios, quando muito, podem lenificar o valor da multa imposta.

Com o respeito que é devido a essa granítica posição jurisprudencial, com ela não acedo, pois que encontro razões para aplicar ao caso presente o princípio da proporcionalidade, cujo conteúdo abarca a ponderação de interesses, de modo que não vejo, nas circunstâncias do caso presente, deva se aplicar à representada a sanção por multa, dado que decido, ponderando os interesses em conflito, que a conduta não pode ser qualificada de ilícita, não para que a conduta possa ser subsumida à norma legal.

Um registro histórico quanto à formação e conformação do princípio da proporcionalidade é de ser feito, para que se demonstre que esse princípio tem plena aplicação às relações jurídicas de natureza eleitoral, nomeadamente às condutas que a lei tipifique como ilícito – como é o caso da doação acima do limite legal.

O princípio da proporcionalidade, como nós o conhecemos hoje, surgiu na doutrina alemã em 1885, e em 1958 foi aplicado pela primeira vez na jurisprudência daquele país, e curiosamente no âmbito do Direito Penal. Analisava-se naquele momento a imputação de crime de aborto e a justificativa da ré radicava no ter procedido à interrupção da gravidez por indicação médica. O tribunal alemão faz assim aplicado pela primeira vez na história a ponderação entre os interesses em conflito, para excluir a ilicitude da conduta por considerar que: “Em situações da vida nas quais uma ação que preenche exteriormente o tipo legal de uma espécie criminosa é o único meio de proteger um bem jurídico ou de cumprir um dever imposto ou reconhecido pelo Direito, a questão de se saber se aquela ação é lícita não é proibida, ou é ilícita deve ser decidida com base no valor relativo que o Direito vigente reconhece aos bens jurídicos ou deveres em conflito”. (KARL ENGISH, Introdução ao Pensamento Jurídico, p. 306, 6ª. edição, Fundação Calouste Gulbelkian).

E, assim, do Direito Penal o princípio da proporcionalidade foi transposto e adaptado para ser aplicado aos demais ramos do Direito, inclusive aos ramos do Direito Público, tornando-se um importante mecanismo concedido ao juiz para analisar as circunstâncias específicas do caso em concreto, ponderando entre os interesses em conflito, para decidir qual deles deva prevalecer. Assim, não há nenhuma razão lógica ou jurídica que faça excluir do Direito Eleitoral a aplicação desse importante princípio, sobretudo quando esse princípio tem previsão constitucional, como se dá no Brasil com a Constituição de 1988.

Perscrutemos, pois, qual o valor jurídico que é tutelado pelo artigo 23, parágrafo 1º., da lei 9.504/1999, e não há dúvida em afirmar que o legislador quis e quer proteger uma certa paridade entre os candidatos sob o enfoque econômico. Assim, se esse valor não foi afrontado de modo importante pela conduta que, em tese, violou a norma legal, não há motivo justo para que considere caracterizada a ilicitude. Ou seja, conquanto a doação em dinheiro tenha sido acima do limite legal, se o valor em excesso não é considerável segundo a realidade econômica do País no momento em que a doação ocorre, e se não há nenhuma comprovação segura de que o valor excesso terá, só por si, gerado um desequilíbrio econômico em favor do candidato que recebe a doação, então nessas circunstâncias não se poderá concluir que o valor tutelado mereça proteção a ponto de conduzir à aplicação da sanção.

O valor doado, com efeito, foi de dez mil reais, de forma que o excesso radica em cerca de dois mil e quatrocentos reais, valor que se pode considerar diminuto segundo a realidade econômica do País em 2018, por equivaler a cerca de três salários mínimos da época.

De resto, nenhuma prova concreta produziu o MINISTÉRIO PÚBLICO no sentido de demonstrar que o valor que configura o excesso na doação terá influído diretamente na quebra da paridade econômica em favor do referido candidato. E o ônus dessa prova incumbia ao MINISTÉRIO PÚBLICO.

É o que considero relevante nas circunstâncias do caso em concreto, em face das quais aplico o princípio constitucional da proporcionalidade, mais especificamente a ponderação entre os interesses e valores em conflito, para decidir que a conduta imputada à representada não deva ser sancionada, afastando, assim, a sua ilicitude, por considerar que o valor tutelado pelo artigo 23, parágrafo 1º., da lei federal 9.504/1999, qual seja a paridade econômica entre os candidatos no pleito eleitoral, não foi afetado em nível que se possa julgar como considerável a ponto de justificar a aplicação da pena contra a representada.

POSTO ISSO, aplicando o princípio constitucional da proporcionalidade, e, pois, ponderando os interesses e valores em conflito, decido que, nas circunstâncias do caso presente, o valor jurídico pela norma do artigo 23, parágrafo 1º., da lei federal 9.504/1999 não terá sido colocado sob desproteção pela conduta atribuída à representada, dado que o excesso no valor doado não foi de molde que colocasse em risco a paridade econômica em favor de candidato no pleito eleitoral de 2018, e, assim, ponderando os interesses em conflito, não vejo caracterizada a ilicitude na conduta imputada, desacolhendo, portanto, o pedido formulado pelo MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL DO ESTADO DE SÃO PAULO. Este processo é extinto, com a resolução de seu mérito.

Sem condenação em encargos de sucumbência.

Publique-se, registre-se e sejam as partes intimadas desta Sentença.

São Paulo, em 16 de julho de 2020.

VALENTINO APARECIDO DE ANDRADE
JUIZ ELEITORAL

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