Há alguns dias, publicamos aqui um texto preparatório em que analisamos  os efeitos gerados pela Lei Complementar 173/2020 quanto à interrupção da contagem de tempo para efeito de adicional por tempo de serviço. Publicamos agora o texto em sua redação final, com a abordagem também sob o enfoque do direito adquirido. Esse  texto será publicado no site www.escritosjuridicos.com.br.


 

LEI COMPLEMENTAR 173/2020: PODE A LEI INTERROMPER O CÔMPUTO DO TEMPO DE SERVIÇO PARA DETERMINADO FIM?

Como contrapartida ao socorro financeiro que prestará aos Estados, Municípios e ao Distrito Federal em decorrência da crise econômica causada pela pandemia, a União Federal impôs-lhes determinadas exigências e condições. É o que está previsto na lei complementar 173, de 27 de maio de 2020.
Uma das condições está prevista no artigo 8o., inciso IX, que obsta que esses entes públicos considerem o período compreendido entre março de 2020 e 31 de dezembro de 2021 como tempo de serviço para aproveitamento em diversos adicionais, como no adicional por tempo de serviço e na licença-prêmio. Eis o texto legal em questão:
“Art. 8º Na hipótese de que trata o art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios afetados pela calamidade pública decorrente da pandemia da Covid-19 ficam proibidos, até 31 de dezembro de 2021, de:
(…)
IX – contar esse tempo como de período aquisitivo necessário exclusivamente para a concessão de anuênios, triênios, quinquênios, licenças-prêmio e demais mecanismos equivalentes que aumentem a despesa com pessoal em decorrência da aquisição de determinado tempo de serviço, sem qualquer prejuízo para o tempo de efetivo exercício, aposentadoria, e quaisquer outros fins.
(…)”.
Assim, durante esse período, os adicionais em questão, embora não tenham sido suprimidos, terão a sua eficácia suspensa. Daí a questão que se coloca: a Lei pode interromper o cômputo do tempo de serviço para esse fim?
Segundo HELY LOPES MEIRELLES em sua conhecida obra “Direito Administrativo Brasileiro”, a lei pode instituir uma vantagem pecuniária sob a modalidade de um adicional por tempo de serviço, quando quer melhor remunerar o servidor público pelo exercício de sua função, como uma forma, pois, de recompensá-lo pelo tempo em que se mantém no exercício do cargo, segundo as condições que a lei preveja. No caso do adicional por tempo de serviço e da licença-prêmio, trata-se, assim, de vantagens pecuniárias que levam em conta o tempo, formando este o elemento nuclear desse tipo de vantagem pecuniária.
No exercício do poder discricionário que a Constituição da República de 1988 confere-lhe, pode a Administração, por sua conveniência, editando lei, suprimir “para o futuro” o adicional por tempo de serviço, como ressalva HELY na obra mencionada.
“Para o futuro”, quer significar que a lei terá que respeitar o direito adquirido do servidor público que estiver a computar o tempo previsto na lei que preveja a concessão do adicional por tempo de serviço, de modo que esse tempo deverá ser considerado, computado e aproveitado para o adicional, a ser concedido e apostilado tão logo o tempo previsto em lei tenha sido completado.
Destarte, a Lei pode suprimir para o futuro o adicional por tempo de serviço, assim como qualquer vantagem pecuniária que tenha como núcleo o aspecto temporal, mas terá que respeitar o direito adquirido daquele servidor que estiver a computar o tempo de serviço, até que o tempo previsto na lei revogada tenha sido completado.
Acerca do direito adquirido, utilizemo-nos mais uma vez da lição de HELY, colhida agora em sua preciosa coleção “Estudos e Pareceres de Direito Público”. No segundo volume dessa obra, o insigne juspublicista detalha a gênese no direito brasileiro do instituto do direito adquirido, sublinhando que essa importante garantia “deita raízes na mais profunda tradição do direito luso-brasileiro”, e que entre nós ela se tornou uma garantia de matriz constitucional a partir da Constituição de 1934, e à exceção, por óbvias razões, da Constituição de 1937, integrou o texto de todas as nossas constituições, e está presente na de 1988, em seu artigo 5º., inciso XXXVI, com o seguinte texto: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”, sendo de relevo destacar o que estabelece a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que, em seu artigo 6º., parágrafo 2º., estatui: “Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo prefixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem”.
Recolhendo os ensinamentos dos grandes doutrinadores que escreveram a respeito, nacionais e estrangeiros, HELY destaca a lição deixada pelo jurista brasileiro, LIMONGI FRANÇA, que, esteado na lição do italiano, Carlo Francesco Gabba, sustenta que o direito adquirido é
“a consequência de uma lei, por via direta ou por intermédio de fato idôneo; consequência que, tendo passado a integrar o patrimônio material ou moral do sujeito, não se fez valer antes da vigência de lei nova sobre o mesmo objeto.”
Daí pontificar HELY acerca dos requisitos que, presentes, caracterizam o direito adquirido:
“a) consequência direta de uma lei ou de um fato idôneo, em virtude de lei do tempo em que o fato se realizou, sendo de notar que, evidentemente, a palavra lei envolve normas constitucionais;
“b) que essa consequência jurídica tenha passado a integrar o patrimônio do sujeito;
“c) que este não tenha feito valer (exercido) o seu direito, antes da vigência da lei nova”. (“Estudos e Pareceres de Direito Público , volume II, p. 273).
Destarte, como a lei prevê a concessão de adicional que deverá ser concedido ao servidor público quando ele atingir um determinado tempo de serviço, constituindo a concessão do adicional, portanto, a consequência direta da lei e do fato por ela previsto (qual seja, o de o servidor ter laborado por determinado tempo), conclui-se que o tempo de serviço laborado pelo servidor sob o regime jurídico iniciado a partir da vigência da lei que tenha previsto a concessão do adicional, passa esse tempo a integrar seu patrimônio jurídico-funcional, abarcando essa garantia o poder de completar o tempo previsto na lei em vigor ao tempo em que se iniciou a contagem do tempo, de modo que uma lei nova não pode interromper o cômputo desse tempo de serviço, ou mesmo para o desqualificar juridicamente (circunscrevendo seus efeitos à contagem apenas para fim de aposentação), dada a proteção ao direito adquirido.
Observe-se, porque de relevo, que o adicional por tempo de serviço é instituído para a contagem de um tempo futuro, tempo esse que é previsto no pressuposto de fato e de direito da norma legal que institui a vantagem pecuniária, de modo que o direito adquirido protege o direito subjetivo do servidor à contagem desse tempo, à sua qualificação jurídica conforme a lei em vigor ao tempo em que a vantagem foi instituída, e nomeadamente o direito de poder atingir o tempo previsto na lei, para que possa fazer valer o direito ao adicional, não podendo causar influxo a lei nova.
Daí a proteção que se deve reconhecer o direito adquirido do servidor público, sobretudo quando a norma que tenha previsto o adicional por tempo de serviço é de natureza constitucional, como se dá no caso do Estado de São Paulo, cuja Constituição prevê, em seu artigo 129, o direito ao adicional por tempo de serviço.
Consideremos, outrossim, a questão sob o enfoque da proporcionalidade, para nesse contexto observar que a Administração contaria com um poder excessivo, se pudesse interromper,
“sponte sua”, o fluxo do tempo ou o desqualificar juridicamente, obtendo com isso efeitos mais vantajosos que poderia obter acaso determinasse a supressão do adicional.
E, assim um benefício que o servidor obteria depois que laborasse cinco anos, somente lhe seria concedido aos sete ou oito anos de trabalho, com uma sensível modificação do aspecto temporal que forma o núcleo da vantagem pecuniária, segundo a lei em vigor, sendo imperioso lembrar que, segundo a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, artigo 2o., uma lei nova que estabeleça disposições especiais (como no caso da mencionada lei complementar), não pode revogar, nem modificar a lei anterior, que continua a produzir seus efeitos em decorrência do direito adquirido.
Poder-se-ia obtemperar, utilizando-se de um vetusto princípio do Direito, de que se a Administração pode o mais, isto é, se pode extinguir o adicional por tempo de serviço, poderia o menos, ou seja, poderia apenas interromper o fluxo do tempo para que não possa ser aproveitado no adicional por tempo de serviço. Esse argumento, contudo, não pode subsistir por três razões:
• primeiro porque, mantendo a lei a previsão do adicional por tempo de serviço como um benefício funcional que o servidor fará jus tão logo complete o tempo previsto em lei, em não havendo nenhuma modificação na forma como o servidor está a laborar, não há justa razão para que esse tempo deixe, artificialmente, de ser aproveitado;
• segundo porque a interrupção desse prazo equivale, na prática, à supressão da vantagem pecuniária, sem, entretanto, haver previsão expressão da lei quanto à essa supressão;
• terceiro porque a interrupção, ainda que pudesse a Administração a impor, deve respeitar o direito adquirido do servidor, até que ele complete o tempo previsto originalmente na lei, considerando, pois, o tempo que esteja já integrado a seu patrimônio jurídico-funcional no momento em que entra em vigor a nova lei, de modo que a interrupção da contagem do tempo de serviço, tanto quanto a supressão, somente podem produzir efeitos para o futuro.

 

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