Tivemos ontem, em São Paulo e no Rio de Janeiro, os primeiros protestos de rua mais consistentes contra o governo Bolsonaro, e, tal como sucedeu em outubro de 2013, a atuação da Polícia Militar deve ser objeto de uma atenta e cuidadosa análise, dado que os jornais revelam que, à partida, as Polícias Militares desses dois Estados podem ter escolhido um lado (em favor daqueles que se posicionavam a favor do governo Bolsonaro), agindo apenas contra quem protestava contra esse governo.
Importante registrar que, em outubro de 2013, não havia um ambiente político tão dividido como o que hoje vivenciamos, e além disso não eram muitos os políticos cuja origem eram as carreiras das Forças Armadas e das Polícias Militares. Esses dois aspectos tornam a situação agora mais grave.
Destarte, o momento é propício para levar ao conhecimento do leitor a sentença que proferimos acerca da atuação da Polícia Militar nos protestos de outubro de 2013, sentença que foi elogiada pela ONU, mas reformada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Aqui, um pequeno trecho da sentença, que será integralmente reproduzida em nosso site www.escritosjuridicos.com.br.
Processo número 1016019-17.2014
Juízo de Direito da 10ª Vara da Fazenda Pública
Comarca da Capital
Vistos.
Discute-se nesta ação civil pública, ajuizada pela DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO, acerca do conteúdo e alcance de três direitos fundamentais previstos em nossa Constituição da República de 1988: o direito de reunião, previsto no artigo 5º., inciso XVI; o direito de liberdade de expressão, previsto no inciso IV do mesmo artigo 5º.; e o direito à cidade, previsto no artigo 182, “caput”, da Constituição – direitos fundamentais que, segundo afirma a autora, estão colocados em uma situação de injustificada desproteção jurídica em razão de medidas desproporcionais adotadas pela Polícia Militar do Estado de São Paulo, buscando, pois, a concessão de provimento jurisdicional que garanta o exercício desses direitos constitucionalmente reconhecidos.
Invocando a legitimidade que lhe é conferida pela Lei federal de número 7.347/1985 e Lei complementar de caráter nacional de número 80/1994 para a propositura de ação judicial na qual se pugne pela tutela de qualquer interesse difuso ou coletivo, e sustentando que em nosso Ordenamento Jurídico em vigor os direitos de reunião, de liberdade de expressão e o de “ à cidade” são direitos fundamentais reconhecidos e que devem ser garantidos através de um processo adequado e efetivo, afirma a autora que a ré, FAZENDA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO, por sua Polícia Militar, está a impedir o regular exercício desses direitos fundamentais, quando adota procedimento desproporcional, atuando com excessiva e desnecessária violência, seja no realizar abordagens sem o uso de qualquer técnica recomendável, seja também no empregar instrumentos inadequados às circunstâncias (balas de borracha, gás lacrimogênio e armas de grosso calibre à mostra), tudo com o claro objetivo, assevera a autora, de impedir o exercício dos mencionados direitos fundamentais, a ponto de aniquilar o uso desses direitos, como quer comprovar pelos diversos episódios que menciona em sua peça inicial, sustentando, pois, que as medidas de polícia adotadas pela ré devem ser caracterizadas como ilegítimas, porque desnecessárias e desproporcionais, pretendendo, nesse contexto, que a tutela jurisdicional comine à ré as providências que enumerou as folhas 91/95, dentre as quais a de obrigá-la a apresentar um projeto de atuação de sua Polícia Militar que defina parâmetros técnicos que garantam um efetivo exercício dos direitos de reunião e de livre manifestação, e que os policiais possam ser identificados facilmente e não usem armas de fogo, armas com balas de borracha e gás lacrimogênio, e que em razão da conduta desproporcional adotada nos eventos referidos, seja a ré condenada a reparar dano moral coletivo, na ordem de R$1.000.000,00 (um milhão de reais), por evento, em um total de oito eventos, cujo montante deverá ser revertido a um fundo específico, e igualmente condenada a reparar todo dano individual que tiver causado.
(…)
Versa esta ação civil pública sobre o conteúdo essencial de três direitos fundamentais (direito de reunião, direito de livre manifestação e o direito à cidade), constitucionalmente previstos em nosso Ordenamento Jurídico em vigor, direitos que estão em relação direta com bens jurídicos-constitucionais invocados pela ré, FAZENDA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO, instalando-se assim uma colisão concreta entre esses direitos fundamentais e bens jurídicos estatais, cuja análise passa necessariamente pela aplicação do princípio constitucional da proporcionalidade e suas formas de controle. Como afirma o conhecido publicista alemão, PETER HÄBERLE, a resposta à questão sobre o conteúdo essencial dos direitos fundamentais exige uma determinação do sentido desses mesmos direitos no conjunto da Constituição, a dizer, a análise da função desses direitos no contexto de uma aplicação prática das normas constitucionais, fazendo-se por isso necessário considerar as relações que os direitos fundamentais mantenham com bens jurídico-constitucionais (cf. “La Garantía del Contenido Esencial de los Derechos Fundamentales”, p. 7, tradução por Joaquín Brage Camazano, editorial Dykinson, Madrid, 2003).
(…)
O que, contudo, verificou-se durante os protestos populares havidos no ano de 2013, desencadeados a princípio por uma insatisfação quanto ao reajuste no valor da tarifa dos ônibus nesta Capital, é que a Polícia Militar do Estado de São Paulo não estava estrutural e logisticamente preparada para lidar com as manifestações populares, que, é fato, não eram comuns no Brasil, salvo aquelas realizadas em 1985 por ocasião do movimento denominado “Diretas-Já”. De 1985 a 2013, com efeito, o que houve foram manifestações esporádicas, sem uma finalidade específica que pudesse arregimentar uma grande parcela de manifestantes. Assim, era mesmo de se esperar que a Polícia Militar do Estado de São Paulo não soubesse agir nessas manifestações populares. Mas o que se viu, em 2013, foi caracterizado por uma absoluta e total falta de preparo da Polícia Militar, que, surpreendida pelo grande número de pessoas presentes aos protestos, assim reunidas em vias públicas, não soube agir, como revelou a acentuada mudança de padrão: no início, uma inércia total, omitindo-se no controle da situação, e depois agindo com demasiado grau de violência, não apenas contra os manifestantes, mas também contra quem estava no local apenas assistindo ou trabalhando, caso dos profissionais da imprensa. Pelo menos dois jornalistas foram vítimas da violência policial nesses eventos.
Daí se poder afirmar que o elemento que causou a violência nos protestos foi o despreparo da Polícia Militar, sobretudo pela falta de um plano de atuação, ou ao menos de um plano de atuação que fosse aplicado em todos os protestos, e que os policiais estivessem a compreender qual o papel que devem exercer em face de um protesto, um papel que, obviamente, não pode ser o mesmo que exercem quando estão a combater criminosos. Cabe aqui chamar a atenção para um especial fato, de que durante os protestos em favor do impeachment, a mesma Polícia Militar de São Paulo, se antes atuara com desmedida violência, ali atuou de forma adequada, buscando proteger o exercício do direito de reunião, o que permitiu que aqueles protestos transcorressem tranquilamente. Isso nos conduz a uma pergunta: teria a Polícia Militar aplicado o mesmo plano de atuação de que se utilizara em 2013, ou conforme a finalidade do protesto aplicou um diferente plano de atuação? É uma questão relevante, porque não se pode olvidar que o direito de reunião é um direito de feição acentuadamente de expressão política, e esse aspecto pode eventualmente determinar uma posição mais rigorosa de um governo em face de protestos que não lhe sejam agradáveis, como pode ser mais tolerante com aqueles que estejam afinados com sua política. Daí porque se impõe ao Estado faça adotar um único plano de atuação, que seja utilizado em todo e qualquer protesto, um plano de atuação que garanta sobretudo a liberdade de reunião e de manifestação, que se trate de um plano previamente estabelecido e conhecido, sobre o qual o cidadão possa conhecer detalhes (salvo alguma informação acerca da qual se deva guardar sigilo, e que isso se possa tecnicamente justificar), porque do contrário é permitir que o Estado aja a seu livre alvedrio, ora para impor uma atuação policial mais rigorosa, ora menos rigorosa, ao sabor de seus interesses políticos.
(…)”.
(Veja a sentença na íntegra em www.escritosjuridicos.com.br)