Na doutrina processual, é comum estabelecer-se a distinção entre “matéria preliminar” e “matéria de mérito”. Mas é possível que uma determinada matéria (ou questão, lembrando que por “questão” entende-se uma afirmação de fato ou de direito que esteja sob controvérsia no processo), constitua uma preliminar e ao mesmo tempo uma matéria de mérito?
Acerca dos pressupostos processuais e das condições da ação, é algo frequente que o juiz, na decisão de saneamento ou mesmo na sentença, diante de uma alegação preliminar do réu sobre esses temas, afirme que o exame da matéria encaixa-se mais adequadamente no análise do mérito da demanda, de modo que aquilo que constitua uma matéria preliminar, é decidido como se dissesse respeito ao mérito da causa.
Observa BARBOSA MOREIRA: “Não há contradição (…) em dizer que determinada questão é de mérito e qualificá-la de preliminar; os conceitos não são reciprocamente excludentes, e a existência de preliminares que já integram o mérito recebe ilustração ofuscante como o exemplo da prescrição”. (Temas de Direito Processual, quarta série, p. 100, Saraiva editora, 1989). Está o ilustre processualista com razão?
No plano da lógica, não. E o mesmo se deve responder se considerarmos o que em termos de cognição ocorre no processo civil.
Com efeito, se atribuímos a uma coisa, ente ou ideia (conceito) uma determinada qualidade que forma a sua essência, é exatamente essa qualidade que a particulariza e que permite a distinguir de outra coisa, ente ou ideia em determinado contexto. Assim, se esse contexto modifica-se, aquela qualidade pode não mais existir, ou ser qualificada de outra maneira, porque já não estaremos a falar da mesma coisa, ente ou ideia.
De modo que se afirmamos que uma matéria surgida no processo civil é de natureza preliminar, isso significa que há nela algo que a caracteriza como tal, no sentido de que seu conteúdo não está ligado diretamente ao exame do mérito da pretensão, entendendo-se como mérito a sentença que julga a pretensão, para a declarar subsistente ou não. Por isso que, na sistemática do CPC/2015, tanto quanto ocorria no CPC/1973, os pressupostos processuais e as condições da ação constituem matéria preliminar, porque não se referem diretamente ao exame do mérito da pretensão, no sentido de que, ao examinar esses temas, o juiz não está a declarar se o autor possui ou não razão.
Contudo, se a matéria arguida pelo réu a título de pressuposto processual ou de carência de ação mantiver, em verdade, relação direta com o julgamento do mérito da pretensão, então nessa hipótese a matéria não apresenta natureza preliminar, e sim de mérito, e como tal deve ser decidida pelo juiz. A natureza da matéria e o contexto em que essa natureza será analisada definirão a sua qualidade essencial como matéria preliminar ou de mérito.
Sob o plano lógico e processual, é incorreto afirmar-se, portanto, que os conceitos de “matéria preliminar” e “matéria de mérito” não são reciprocamente excludentes. Excluem-se, sim, porque se o juiz analisa como preliminar uma determinada matéria, isso significa que ele não está a decidir o mérito da demanda (ou seja, não está a decidir se o autor possui ou não razão no que argumenta em termos de bem da vida como objeto da demanda).
Mas e a prescrição, não constituiria ela, segundo BARBOSA MOREIRA, o exemplo “ofuscante” da tese que sustentou? Certamente não. Se examinarmos o rol do artigo 487 do CPC/2015, que trata das hipóteses em que o juiz julga o mérito da pretensão, constataremos que o juiz está a decidir se o autor possui ou não razão quanto ao direito subjetivo que invoca no processo em relação ao bem da vida que forma o pedido. Assim, quando acolhe ou rejeita o pedido do autor (ou do réu, quando há reconvenção ou pedido contraposto), quando homologa a transação ou o reconhecimento do réu quanto à procedência do pedido do autor. Mas quanto à prescrição (e também à decadência), há uma razão justa para que o legislador a tenha inserido no rol do artigo 487: a coisa julgada material, o que significa dizer que o legislador aí está a modificar o conceito de “mérito”, desvinculando-o de sua ideia tradicional (análise do que o autor pleiteou como bem da vida), fazendo um uso particular, apenas para o fim de poder estender à sentença que pronuncia a prescrição e a decadência a imutabilidade dos efeitos do ato decisório, atendendo assim ao valor da segurança jurídica. Com efeito, se a sentença que pronuncia a prescrição e a decadência não pudesse ser alcançada pela coisa julgada matéria, a mesma demanda poderia ser reproposta, com os riscos que obviamente envolveriam essa situação.