Ainda que se pudesse reconhecer aos Estados-membros e aos municípios autonomia administrativa para impor medidas restritivas como as do isolamento social e o fechamento do comércio, emprestando ao conceito de “saúde” de que trata o artigo 23, inciso II, da Constituição de 1988, um conteúdo que legitimasse essa interpretação, teríamos necessariamente que considerar o que prevê o “caput” desse artigo, o qual estatui uma competência comum entre a União Federal, Estados, Distrito Federal e os Municípios, prevendo o parágrafo único desse artigo que lei complementar fixará “normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional”. Preceito constitucional que objetiva garantir a harmonia do nosso sistema jurídico, como sói deve ocorrer em um regime republicano como o nosso e com uma federação que o molda.
Como pontifica GERALDO ATALIBA:
“(…) a interpretação de legislação e demais atos de governo haverá de ser sempre desempenhada – pela Administração ou pelo Judiciário – de modo a, exaltando a harmonia do sistema jurídico, valorizar condigna e adequadamente os seus princípios fundamentais, buscando dar-lhes eficácia e fazer com que todos os comportamentos se curvem às suas exigências. Só assim a república será valorizada e exalçada no plano prático, como o foi na elaboração constitucional e nos desígnios constituintes, refletindo com fidelidade o querer do provo, titular da república”. (República e Constituição, p. 43, 2a. edição, Malheiros editores).
Destarte, tendo a União, por meio da Lei 13.979/2020, legislado acerca das atividades que devem ser consideradas como essenciais dentro do regime de excepcionalidade imposto por uma pandemia, remetendo a um decreto de regulamentação uma explicitação dessas atividades, há que se harmonizar essa legislação de caráter nacional com a legislação que Estados, Distrito Federal e Municípios tenham também editado, o que significa concluir que, definida por lei da União, ainda que não formalmente uma lei complementar, uma atividade como essencial, não podem os Estados, Distrito Federal Municípios desconsiderarem essa norma legal, sob pena de uma perigosa quebra do princípio da harmonia de nosso sistema jurídico.
Suponha-se, por exemplo, que um determinado município legislasse para estabelecer que a atividade dos bancos não é essencial e que por isso obstasse seu funcionamento, o que deveria prevalecer: a autonomia da União Federal para legislar em normas gerais, ou a legislação do município? E considerando que temos mais de cinco mil municípios, o que poderia ocorrer se cada município pudesse legislar acerca dessa matéria? E entre um estado e seus municípios, não poderá haver divergência na legislação de cada um quanto ao que se deva ou não considerar como atividade essencial, e diante dessa divergência o que deverá prevalecer?
A harmonia de nosso sistema jurídico impõe devam prevalecer as normas gerais que a União Federal tenha editado para a qualificação jurídica de essencialidade para as atividades profissionais, dentro do regime de excepcionalidade imposto pela pandemia, obrigando-se os demais entes públicos a observarem essas normas gerais.
Isso não significa concluir que a legislação ora editada pela União Federal não deva ser analisada sob o aspecto de sua legalidade substancial, tanto quanto deve suceder em relação à legislação editada pelos outros entes políticos, de modo que o Poder Judiciário, se provocado, terá que decidir se há razoabilidade na definição de cada atividade como essencial ou não. Mas sob o aspecto da legalidade formal, não há dúvida de que a União Federal legislou dentro de sua competência concorrente, para fixar normas que são gerais e que devem ser observadas pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, como exige o princípio da harmonização de nosso sistema jurídico.
Obs: o site de notícias “Uol” acaba de publicar notícia acerca da dúvida com a qual se deparam municípios do Estado de São Paulo entre cumprir o decreto da União Federal e observar a legislação editada pelo Governo do Estado de São Paulo, havendo, pois, municípios que decidiram cumprir o decreto da União, autorizando, pois, a reabertura de salões de beleza e barbearias, enquanto outros municípios mantêm fechados esses estabelecimentos comerciais. A comprovar a premente necessidade de que se harmonizem as regras que compõem o nosso sistema jurídico.